31 de dez. de 2006

E Que Venha 2007...











E que no meio de tantos
rumores
sabores
dissabores
amores
dores
cores
flores

Possamos ainda
sorrir
existir
expandir
persistir

Sem com isso esquecer de
amar
perdoar
acreditar
lembrar
deixar
continuar
beijar
levantar

E buscando sempre
ser mais do que ter
fazer
florescer
renascer
esquecer
permanecer
crer

14 de nov. de 2006

Minha Ponte Aérea para Shangrilá

Há frases, músicas, aromas, lugares que, em determinados momentos, significaram muito pra mim, e aos quais sempre retorno para resgatar um sentimento ou alguém (e esse alguém, geralmente, é quem eu fui, ao me ver transformada durante aquela determinada troca de sensações).

Alguns desses meus portos seguros são os livros.

Lembro-me, ainda pequena, quando tive catapora,e fiquei alguns dias de “castigo” para me recuperar, tendo como companhia Zezinho, O Dono da Porquinha Preta. A partir de então, peguei o vício da leitura, e tive uma infância recheada de aventuras, desde segredos em ilhas e órfãs heroínas, até o mundo mágico de Narizinho e Emília. As aventuras de Hercule Poirot e Miss Marple povoaram a minha adolescência de mistérios e crimes a resolver, a ponto de eu ter passado alguns anos tentando descobrir os pretensos macabros segredos de toda a minha vizinhança.

Alguns anos depois, li outros livros que afetariam, definitivamente, a minha vida, dentre eles, o indescritível Crime e Castigo. Tão apaixonada fiquei por aqueles universos novos, todos me aguardando para serem descobertos, que nunca mais quis abandoná-los, e, até hoje, não fico mais de dois meses sem embarcar em uma nova aventura, onde os personagens têm seus perfis descritos, mas seus sorrisos, suas silhuetas, sua expressões... só o leitor pode saber, definir, criar. Ler é como brincar um pouquinho de Deus, e poder, a nosso bel prazer, inventar e reinventar as situações, viver tantas situações e tantos amores em uma só existência. A cada vez que releio algum livro de Jorge Amado, o sol em determinado capítulo está mais quente. A cada releitura de algum romance do Milan Kundera, a paixão entre alguns personagens torna-se mais tórrida. A cada festa descrita por Scott Fitzgerald relida, a embriaguez é maior.

Dentre os tantos (tantos!) trechos de livros a que me remeto sempre, estão aqui alguns deliciosos, sofridos, reflexivos, vividos, divididos!!!


Isabel Allende: A CASA DOS ESPÍRITOS:
"Barrabás chegou à família por via marítima..."

Milan Kundera: A IMORTALIDADE:
"O sorriso e o gesto eram cheios de sedução, ao passo que o rosto e o corpo já nada de sedutor tinham. Era a sedução de um gesto afogado na não-sedução de um corpo. Mas a mulher, embora devesse saber que deixara de ser bela, esquecera-o neste instante".

Gabriel Garcia Marquez: O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA:
“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados”.


Robert Pirsig: ZEN E A ARTE DE MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS:
“A motocicleta funciona inteiramente de acordo com leis racionais, e o estudo da arte da manutenção de motocicletas é, no fundo, um estudo em miniatura da arte da própria racionalidade.”

28 de out. de 2006

Em Qualquer Lugar

Por esses dias, andei angustiada, sem saber o que comprar de presente para uma amiga minha, muito querida. Às vezes achamos que é mais difícil presentear aqueles que mal conhecemos. Hum... tenho que discordar. Explico-me: quando mal conhecemos alguém, realmente fica difícil presentear por desconhecermos totalmente seus gostos e preferências. Mas, quando conhecemos tanto e tão intimamente alguém, a expectativa da sintonia, da novidade, do inesperado, dificultam ainda mais a escolha, tornando o exercício angustiante.

E foi nesse contexto que me deparei com o CD da Rita Lee, Aqui, Ali, Em Qualquer Lugar. A Rita Lee, para mim, é como o Paul McCartney: quando a gente acha que eles já inventaram de tudo, eles vêm e mostram quão enganados estávamos. As músicas do McCartney e do Lennon, imortalizadas pelos Beatles, já sofreram versões que as descaracterizaram e as caricaturaram. E, ao perceber que o CD da Rita não apenas fazia a releitura de alguns desses clássicos, como também trazia algumas versões livres para o português, a minha aflição, imaginando que a ela beirava esse patamar, aumentava.

E quão prazeroso foi, para mim, perceber que eu estava completamente enganada! A Rita interpreta com delicadeza belas músicas como All My Loving, A Hard Day´s Night e Here, There and Everywhere. E quanto às versões livres para o português que ela faz de algumas dessas músicas?, algumas eu achei interessantes e ousadas, como os versos em que ela brinca com um “I love you pra xuxú/ Se você não está perto eu fico jururu/ Tudo azul mas sem você eu fico blue” ou outro “você vai se ferrari”. Outras, não fizeram tanto assim o meu estilo, ficando eu agradecida por existirem as versões originais em inglês.

Mas não será a amizade como o CD da Rita, enfim?, ela pode ser sempre a mesma, sob várias versões e variações?, uma mesma base, sendo sempre reconstruída e reinventada, sem, com isso, perder-se a versão original?.

O CD da Rita é para ser ouvido no carro, com o trânsito engarrafado ao meio dia; em casa, em um domingo chuvoso, comendo mingau de aveia em cumbuca de porcelana azul, ou em qualquer lugar. É um CD reconfortante sobre inovar, tentar, ousar – com a cautela de não beirar o ridículo.

Dedicá-lo a si mesmo, a um amor ou a um amigo, é um convite à reinvenção, por tempo indeterminado, de um sentimento eterno – eterno como as músicas dos Beatles e a irreverência da Rita. É compartilhar a certeza de que as mudanças existem e continuarão sempre existindo, mas as nossas versões originais estarão sempre ali, guardadinhas, estejamos nós aqui, ali, ou em qualquer lugar.

Não tive mais dúvidas sobre o que comprar.

1 de set. de 2006

Quando o Invisível Nos Salta Aos Olhos

O novo filme do M. Night Shyamalan, A DAMA NA ÁGUA (versão em português para o título original Lady in the Water), lembra, de várias formas, o igualmente maravilhoso SINAIS.

Para os fãs do diretor, que apostam sempre em filmes surpreendentes como O SEXTO SENTIDO, tanto SINAIS quanto A DAMA NA ÁGUA podem parecer frustrantes. Provavelmente, porque as minúcias desses filmes, sua real beleza e encanto, acontecem a partir do cotidiano transformado em situações fantásticas e inverossímeis, que constituem, na verdade, pano de fundo para uma estória maior.

Em A DAMA DA ÁGUA, o zelador de condomínios Cleveland Heep, vê-se de frente com o seu passado, supostamente engavetado, a partir de uma sucessão de fatos fantásticos – assim como acontece com o personagem Graham Hess, em SINAIS.

Ao conhecer de forma inusitada a jovem e frágil Story (cujo nome já nos revela um pouco de sua confusa identidade, tendo em vista ela ser uma personagem fantástica de uma antiga estória de ninar – bedtime story), Cleveland se vê diante não apenas da crise de Story, mas de sua própria. Não é apenas Story que desconhece sua identidade, seu destino e sua missão, mas todos nós – apesar de, muitas vezes, fingirmos que não. Talvez por isso não seja tão estapafúrdio vermos o zelador e os demais moradores do condomínio acreditando tão facilmente em sua condição, porque nós mesmos somos levados a acreditar.

E aí se mostra a real beleza do filme, não em suas criaturas fantásticas e trilha sonora envolvente, mas na capacidade do ser humano de ACREDITAR, de BUSCAR. Seríamos nós capazes de ser como somos e fazer grande parte do que fazemos se alguém não nos dissesse que somos capazes?, qual a tênue linha que divide o destino da “mão na massa”?, quantas vezes, ao ouvirmos alguém nos dizer algo, realmente escutamos o que aquela pessoa diz em vez de o que queremos acreditar que ela esteja dizendo?, se pudéssemos previamente conhecer o nosso destino, optaríamos por fazê-lo, ou preferiríamos ignorar esse conhecimento e construí-lo às escuras?.

Em A DAMA DA ÁGUA, Shyamalan nos expõe de forma crua o quanto tentamos tornar verdade aquilo que queremos que seja; o quanto somos conhecidos, muitas vezes, apenas a partir das identidades que aparentamos ou tentamos aparentar; e o quão prepotentes somos ao julgarmos conhecer os outros a partir de impressões.

E, invariavelmente, nos surpreendemos com o quão pequeno somos em nossas percepções e julgamentos, e o quão enorme em nossos potenciais – muitas vezes desconhecidos.

31 de jul. de 2006

Eu, Zen, e Aqueles Dias Em Que a Gente Se Sente Como Quem Partiu Ou Morreu...



Ir ao trabalho é uma atividade tão corriqueira quanto almoçar ou escovar os cabelos. Executamos essas atividades, diariamente, até o ponto em que se tornam mecânicas e não percebemos, muitas vezes, as nuances desses momentos.

Foi assim com aquela manhã em que cheguei ao meu trabalho. Manhã chuvosa, cinza, fria, sem vontade de ser manhã. Desliguei o carro, ainda ao som do Chico Buarque e sua Roda Viva, e olhei para frente, para o vidro do carro.

Dentre tantas gotas de chuva, uma gota, aquela gota, caiu naquele momento, parecendo uma lágrima longa e cheia, dançando pelo vidro. Nenhuma das outras gotas, esmagadas, desmanchadas por todo o vidro tinham aquela tristeza. E, naquele momento, não existia mais eu, e não existia mais a gota. Eu me converti em gota, em objeto em queda livre amortecida; e a gota, até então exterior ao meu ser, subitamente se convertera a algo interior a mim. Mente, corpo e água se fizeram completamente transparentes, perdendo, momentaneamente, sua opacidade existencial. Éramos um só, o reflexo do universo em conjunção naquele momento, concorrendo simultânea e paralelamente para seu harmônico e contínuo andamento. Esquecemos. Deixamo-nos, iluminar uma pela outra, e esquecemos. Esqueci que não era gota de chuva, a chuva esqueceu que não estava dentro de mim. Fomos um! A exteriorização do interior, a interiorização do exterior. A junção absolutamente indiferenciada e indivisível: uma pura consciência sem sujeito nem objeto.

De repente, ela findou, terminou de chorar, fez seu trajeto e morreu. Voltei a ser eu, ela já não era mais gota. Ao piscar os olhos, percebi que ainda estava no carro, o rádio ainda ligado, Chico ainda cantando.

Fechei tudo, desci do carro e fui trabalhar, ainda com uns versos do T.S.Elliot brincando em minha mente:

Música tão profundamente escutada que
Já não a escutamos, posto que nós mesmos
somos música enquanto dura...

17 de jul. de 2006

Aquela Suave Melancolia


Todos temos que viver as horas, os dias, e seus momentos - seja o tempo uma realidade, ou uma construção do homem na tentativa de equacionar tudo aquilo que lhe foge ao controle.

Nas relações pessoais, amorosas, profissionais, ou no ambiente onde nos encontramos, às vezes a vida parece ter entrado em uma espécie de engrenagem, e temos a sensação de que, a partir daquele momento, tudo tomou um rumo, e seguirá um confortável e previsível padrão. Mas há também aqueles momentos em que é difícil até mesmo o reconhecimento do rosto que vemos ao espelho. E nesses momentos, geralmente, nos sentimos irremediavelmente sós, órfãos, perdidos, abandonados por todos e pelo destino. Olhamos para os que nos rodeiam, e custamos a perceber alguma identidade entre nós e esses “estranhos”.

O filme Lost in Translation (que, no Brasil, recebeu o título Encontros e Desencontros) retrata alguns desses momentos em que a suposta perfeita engrenagem parece apresentar defeitos. Sou encantada com esse filme por diversas razões: o casal de atores protagonistas, a trilha sonora, a incrível vontade que cresceu dentro de mim de conhecer o Japão, e, principalmente, por falar com tanta delicadeza sobre a solidão. Em meio a uma era em que os avanços tecnológicos facilitam cada vez mais a conexão entre as pessoas, essas são – e se sentem – cada vez mais sós.

Charlotte, recém casada, acompanha o marido ao Japão a trabalho. Vendo-se sem a sua companhia por vários dias, ela se depara com a dificuldade de comunicação, em um país estranho cujo idioma ela não entende. Mas, aos poucos, vamos compreendendo que as barreiras criadas pelas diferenças culturais podem ser contornadas. Estar só não significa, necessariamente, sentir-se só. Sentir-se só, para Charlotte, é estar ao lado de seu marido - com quem ela começa a desconfiar não ter tantas afinidades quanto imaginava, com quem ela não consegue se comunicar, a quem ela tantas vezes não reconhece ao olhar, com quem ela percebe não partilhar das mesmas ambições – do que explorar sozinha uma terra nova, estranha e completamente diferente.

O filme apresenta cenas interessantíssimas – e divertidas - de dificuldade de comunicação entre os protagonistas (Bob e Charlotte), e os japoneses. Mas, mesmo o que se perde na tradução de uma língua para outra ainda é menos do que se perde quando tentamos traduzir o que disfarça a falta de comunicação entre aqueles que falam a mesma língua.

Vale à pena assistir Lost In Translation, e partilhar de sua suave melancolia.

8 de jul. de 2006

Ainda Sobre a Imortalidade - O Mito dos Carajás

Foto de Cláudia Andujar.

O que torna o ser humano imortal é não ter medo de renunciar à imortalidade. É não temer, arriscar, não se acomodar, e ter sempre a humildade de saber que existe muito, mas muito, além daquilo que se conhece.

Essa fome por descobrir, desbravar, conhecer e auto-conhecer é lindamente ilustrada pelo mito dos índios carajás.

O Criador fez os carajás imortais. E viviam como peixes, nos rios, nos lagos. Não conheciam o solo, a Lua, ou as estrelas. Conheciam as águas. E no fundo de cada rio, onde eles estivessem, havia sempre um buraco carregado de luz, de grande intensidade. E era o preceito do Criador: “Vocês não podem entrar nesse buraco, senão perdem a imortalidade”. E eles circundavam aquele buraco, se deixavam iluminar com as suas cores, pela luz que dali surgia, mas respeitavam, apesar de grande a tentação: o que tem lá dentro?.

Até que um dia, um carajá foi, e se meteu buraco adentro, caindo nas praias esplêndidas do Rio Araguaia - q são praias belíssimas -, e ficou maravilhado. Viu o sol, pássaros, paisagens soberbas, flores, borboletas. Para onde dirigia o olhar, ficava cada vez mais boquiaberto, e quando começou a entardecer e o sol a sumir, pensou em voltar aos irmãos, mas então apareceu a Lua, as estrelas, cânticos de pássaros, e ele ficou mais embasbacado ainda. Passou a noite se admirando da grandiosidade do Universo. E quando o sol começou a despontar, ele se lembrou dos irmãos e voltou pelo buraco. Reuniu os irmãos e disse: “Vi uma coisa extraordinária! Vocês não podem imaginar!”, e contou a experiência toda. E todo mundo queria passar pelo buraco. Então os sábios disseram: “Mas o Criador é tão bondoso conosco, nos deu a imortalidade! Vamos consultar o Criador.”. E eles foram: “Pai, deixa-nos passar pelo buraco, é tão extraordinária aquela realidade que o nosso irmão afoito nos contou”, e o Criador, com certa tristeza, disse: “Realmente, é uma realidade esplêndida... Vocês podem ir pra lá, mas tem um preço: perdem a imortalidade!”

Todos se entreolharam, e fixaram o olhar naquele primeiro que foi. E todos decidiram passar pelo buraco, e renunciar à imortalidade.

Então, o Criador disse: “Vocês terão experiências fantásticas, de beleza, de grandiosidade, mas tudo será efêmero. Tudo vai crescer, maturar, decair e morrer. E vocês vão participar disso. É o que querem?”, e todos unanimemente responderam “Sim!”.

E foram, cometeram o ato de suprema coragem para ter a liberdade e viver a experiência, renunciaram à vitalidade perene, renunciaram à imortalidade. E até hoje estão os carajás, naquelas praias lindíssimas, mortais, porém profundamente livres!

18 de jun. de 2006

Não Morrerá Como os Restantes

Starring Nigh - Van Gogh

Como mais órfã que me sinto, sempre que somem de nosso cenário, por serem chamadas para a eternidade, as pessoas que se vão inconsolavelmente cedo -, fico, aqui, imaginando o conceito da palavra Imortalidade.

Milan Kundera, em seu romance “A Imortalidade”, classifica-a como pequena e grande. A pequena imortalidade é a recordação de uma pessoa no espírito daqueles que a conheceram. A segunda, é a recordação de um homem no espírito daqueles que não o conheceram, como acontece com pessoas que deixaram um traço, uma história. Pessoas que afetaram, em maiores proporções, o mundo de que fizeram parte. Ou, parafraseando o Jorge Luís Borges, quando um único homem imortal é todos os outros homens.

A busca pela imortalidade é algo constrangedoramente interessante de ser verificado. Dos remotos tempos até nossos dias, desde romances conturbados, gravidezes contestadas, crimes hediondos, até participações em Big Brothers, o sonho dos quinze minutos de fama que se tornarão eternos é perseguido. Algumas pessoas não se contentam em ser pequenos imortais, pelo simples fato de que não se acreditam assim, não se acham boas o suficiente para serem lembradas ou, o que é ainda mais aterrorizante, para despertarem nos outros comoção por sua ausência. E estão sempre gesticulando neuroticamente, tirando a roupa, falando um pouco mais alto, na tentativa de serem ouvidas, já que não suportam, sozinhas, suas próprias vozes.

Já os grandes imortais, via de regra, não estão com essa preocupação latente. Eles fazem o que fazem, vivem suas idéias e as refletem em seus ofícios por uma razão muito simples: eles não têm opção! Não há como guardar aquilo – que pode ser chamado de dom, persistência, excentricidade ou sonho – dentro deles, sem deixar jorrar! Eles contaminam o mundo – seja o mundo uma grande população ou aquelas dez pessoas que foram afetadas pela sua existência -, e se tornam imortais, ainda na condição de mortais, ainda vivos, ainda perseguindo o que nem sabem se vão encontrar.

O conceito de grande imortalidade é maravilhosamente descrito por Arthur Schopenhauer,em 'Aforismos': “Certo dia, quando recolhia espécimes por baixo de um carvalho, encontrei, entre as outras plantas e ervas daninhas, e do mesmo tamanho que elas, uma planta de cor escura com folhas contraídas e um caule direito e rígido. Quando ia tocar-lhe, disse-me com voz firme: «Deixa-me em paz! Não sou uma erva para o teu herbário, como as outras a quem a natureza deu apenas um ano de vida. A minha vida mede-se em séculos. Sou um pequeno carvalho.» Assim é aquele cuja influência se fará sentir ao longo dos séculos, quando criança, quando jovem, muitas vezes já quando homem, uma criatura viva aparentemente igual às restantes e tão insignificante como elas. Mas basta que lhe dêem tempo e, com o tempo, pessoas que saibam reconhecê-lo. Não morrerá como os restantes.

As pessoas saem de cena, mas fica o que chamamos de Imortalidade, que temo ser, em última instância, a necessidade desesperada de nos apegarmos à memória de tudo que soma, de tudo que pode se desmanchar no ar, para não termos que aceitar viver em um mundo prodominantemente medíocre!

16 de jun. de 2006

O Velho, O Mar e Eu

Ler O VELHO E O MAR, de Ernest Hemingway, fez-me ter vontade de pescar em alto mar, assim como ler ZEN E A ARTE DA MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS, de Robert Pirsig, me deu vontade de cruzar o estado sobre duas rodas. Por um motivo muito simples: são livros apaixonantes! Livros em que, durante a leitura, esquecemos que somos passivos, e passamos a fazer parte da aventura, do drama.

Mas, voltando a Hemingway... sou fã do escritor – apesar de sua declarada simpatia por Fildel Castro. Desde a sua intrigante biografia, até – e principalmente – seus romances. Desde sempre, pergunto-me “por quem os meus sinos dobrariam”!

Em O VELHO E O MAR, ele trata da vida de um velho pescador, Santiago, que, segundo descrito por ele, "tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos, que eram da cor do mar, alegres e indomáveis”.

Santiago está, há 84 dias, sem fisgar um peixe, e decide lançar-se ao mar, e não retornar até que mude essa situação. A princípio, somos levados a achar que o velho quer provar aos demais de sua aldeia em Havana que ainda é um bom pescador. Mas é a si mesmo que ele precisa provar algo. Como define H.D.F.Kitto, em seu livro OS GREGOS, “o que impulsiona o herói grego a praticar atos de heroísmo não é o senso de dever que conhecemos – o dever em relação aos outros; ao contrário, é um dever com relação a si mesmo. Ele luta para conseguir aquilo que designamos 'virtude', mas que os gragos chamam aretê, ou seja, superioridade”. É a descrição do motivo de “dever para consigo mesmo”, tradução perfeita da palavra sânscrita dharma. O dharma dos hindus, a “virtude” dos gregos antigos, é o motor propulsor que leva o velho Santiago a alto mar, por três dias, em busca de sua baleia Moby Dick, em busca de enfrentar seus medos, suas angústias, suas fraquezas.

Durante a aventura do velho pescador, Hemingway nos mostra os limites do ser humano diante de seus obstáculos. A busca por derrubar os inimigos passa por vencermos nossos próprio medos, e todo o custo que isso implica. O respeito pelo inimigo, a compreensão de que o peixe – no caso do velho Santiago – constitue-se inimigo pela circunstância, e o consequente respeito que eles demostram um pelo outro, apesar da batalha exaustiva e quase infindável, mostra que, em um duelo, se vencemos nosso oponente, devemos ter em mente que isso se deu por sorte, circunstância ou algum elemento que conferiu superioridade a uma das partes. Mas nunca, em momento algum, deve-se deixar de respeitar o seu adversário. Como disse Jean Yves Leloup, “amar o inimigo é desposar o outro em sua radical outridade, é descobrir a luz sob sua forma de sombra inseparável".

Tentar descrever O VELHO E O MAR é como tentar descrever um dia de pesca, ou uma jornada de motocicleta... cheio de minúcias, possível apenas aos que mergulham nesse desafio e suas incríveis descobertas!


2 de jun. de 2006

Fundo de Quintal


Pensando no que eu quero para a minha vida, cheguei a uma conclusão: para o meu futuro, eu quero um quintal.

Quero grama, quero sol, quero árvore e céu. Quero espaço, quero me sentir livre. Não quero passar o resto de minha vida a ver a vida através de uma janela com grades. Quero abrir a minha porta, e poder sair lentamente em direção às minhas tardes de agosto lá fora. Quero não precisar me limitar a alguns metros quadrados de concreto e tinta óleo. Quero banho de chuva em fins de tarde.

É cada vez menor o número de quintais. Deveria haver um estudo sobre isso, sobre a contínua tendência de nos fecharmos em alguns tristes metros quadrados, em nossa necessidade, cada vez maior, de justapor, verticalmente, todos os nossos sonhos, obrigações, frustrações e anseios.

Quando decidimos abrir as portas para o quintal – e, antes disso, quando nos permitimos ter um quintal -, sentimo-nos como Robinson Crusoé, ao encontrar na areia as pegadas do índio Sexta-Feira. É como encontrar a saída da jaula na qual nem percebíamos que estávamos encerrados. E então, encontramos flores, chuva, céu, pedras... mas, acima de tudo, liberdade, oportunidade, diversidade! Encontramos espaço para atividades que não se resumam às ensimesmadas, a que estamos acostumados.

A cada dia, a mídia, a tecnologia, a violência e o conseqüente ritmo frenético de nossas vidas nos convencem de que não precisamos de um quintal, de que nem mais queremos um quintal.

Às vezes, esqueço do meu. Esqueço de regar as plantas, de andar descalça pela grama molhada, e de ofuscar meus olhos ao olhar para o domingo ensolarado... Que bom que, em nossas vidas, existem os domingos ensolarados!

16 de mai. de 2006

O Palhaço Que Sabia Demais


O palhaço... Esse ser entre o engraçado e o ridículo, perdido entre tanta maquiagem e pano, o palhaço.

As primeiras lembranças que tenho de palhaços são nas festas infantis. Geralmente, o próprio aniversariante está tão apavorado, que não entende porque seus pais o submeteram a tal tortura. Alguém conhece alguma criança de colo, que não chore, quando próxima a um palhaço - em sua festinha de aniversário de dois anos - que insiste em rir e pular?, eu não conheço. Particularmente, não me lembro dessa fase de minha vida, mas tenho quase certeza de que também chorei, todas as vezes que um palhaço esteve a menos de dois metros de mim – e, por isso, a minha tolerância limita-se aos palhaços de circo, sempre mantidos a uma segura distância. Mas, esses que nos assustam, que nos fazem chorar, não são os verdadeiros palhaços.

O falso palhaço acredita-se engraçado sem realmente ser, ri de suas insossas piadas antes de todos os outros, e não vê a hora de tirar a fantasia. Ele não é palhaço, ele está palhaço – ou pelo menos tenta. O falso palhaço sente um enorme alívio ao se perceber não-palhaço, ao fim do espetáculo. Ele não traz alegria, não diverte, não emociona, não nos proporciona a possibilidade de sonhar e navegar, por breves momentos, por água amenas e inocentes. Por um simples motivo: ele não acredita. No fundo, ele se acha bobo, sente vergonha, e tem uma inveja engasgada e triste de todos os que não a têm. Ele é o modelo que nos inspira a chamar aquele cunhado desagradável ou o vizinho briguento de “palhaço”.

Mas, voltemos aos verdadeiros palhaços. Os que realmente são palhaços, enquanto estão no palco, sentem-se palhaços, sorriem, correm, dançam, caem e cantam como palhaços. As gargalhadas são seu combustível, e não o resultado buscado ao final de cada espetáculo. O verdadeiro palhaço imagina-se palhaço, acredita-se palhaço. Por isso, ele chora ao fim do espetáculo. Pois ele morre, sempre morre! Ponho-me a imaginar o exato momento em que, ao fim do espetáculo, o palhaço tira a sua maquiagem, e, vendo de novo o seu rosto no espelho, chora. Acabou a fantasia, acabou a risadagem, ele não é mais o centro daquela alegria, daquele universo paralelo de sorrisos e doces, elefantes e trapezistas, cheirando a lona e madeira. Agora é voltar aos problemas e à realidade, às sucessivas provações e fracassos –sem direito a pipoca.

É preciso muita coragem para ser palhaço, para viver sempre no limiar do ridículo, sem realmente sê-lo. O verdadeiro palhaço, ao constatar que deixou de sê-lo realmente, após água, algodão e sabonete, sai, caminhando, com as mãos nos bolsos, e com aquela sensação vazia.

Por um momento – apenas por um breve momento – ele imaginou que, dessa vez, não precisaria tirar aquela maquiagem... Ao contemplar, com ar decepcionado, o seu rosto, mal consegue ouvir, em sua memória, aquelas risadas gostosas das crianças, entre pipoca e algodão doce, a cada tropeço seu no palco. E ele sorri um sorriso triste, imaginando como foi capaz de um outro mais expressivo e sincero há tão poucos instantes.

6 de mai. de 2006

O Prosperar Contínuo do Desejo



Engana-se quem ainda não vê relação entre a Economia e a Felicidade. Hoje, muito se fala sobre Felicidade Interna Bruta de um país (FIB). Assim como o PIB, o FIB é um índice, mas diferentemente daquele, esse mede o grau de satisfação de uma população com sua qualidade de vida. Não é de hoje que se relaciona a felicidade com as condições econômicas de um determinado país. Adam Smith, o autor de A Riqueza das Nações, já discutia a felicidade em Teoria do Sentimento Moral.
O conceito de Felicidade Interna Bruta surgiu na década de 1970, no Butão, um pequenino e distante reino isolado no Himalaia, de cultura tradicional budista, para rejeitar a idéia de que o desenvolvimento deveria ser uma cópia exata do Primeiro Mundo. Lá, a felicidade do povo é um dos objetivos do governo, e esta busca se baseia em quatro pilares: incentivo à cultura, preservação do meio ambiente, independência econômica externa e bom governo. Foram implantados sistemas de saúde e educação universais que aumentaram significativamente a qualidade de vida da população. Satisfeitas essas primeiras necessidades, outros fatores passam a afetar o índice de Felicidade Interna Bruta: as relações sociais, o tempo que se consegue passar com família e amigos, saúde, e o grau de satisfação no trabalho – ou o desemprego.
Começamos a falar, então, sobre o que o economista alemão Johannes Hirata, define como bem-estar subjetivo. Ora! Subjetivamente, quanto mais pessoas ricas em uma sociedade, mais os pobres vão se sentir pobres. Subjetivamente, na medida em que um indivíduo alcança os objetivos que supostamente o fariam feliz, ele criará outros para justificar a – ainda – busca pela felicidade. Isso explica porque um país como o Butão, que rejeitava o modelo de consumo, hoje, com sua população educada e saudável, quer mais é consumir. Quando um país é muito pobre, quando a pessoa passa fome, ela não está feliz. Um aumento de bem-estar material traz felicidade, mas só até certo ponto, onde ela pára de crescer. Esse fenômeno reforça uma idéia que tem raízes na escola utilitarista do século XIX, segundo a qual a utilidade marginal de qualquer coisa é decrescente. A segunda barra de chocolate dá menos prazer que a primeira e assim por diante. É um paradigma usado como argumento para a importância da distribuição de renda e de o Estado destinar mais dinheiro às políticas que beneficiem os mais pobres. A correlação entre renda e felicidade nos países ricos mostra que, ao longo do tempo, eles não ficam mais felizes quando crescem. Isso acontece, por exemplo, com os Estados Unidos, onde não há aumento do bem-estar subjetivo faz muito tempo. Eles começaram a medir isso em 1946. A renda per capita lá deve ter aumentado no período entre 200 e 300%, mas não houve aumento significativo da felicidade. Reflexos de uma sociedade capitalista, sempre insaciável: o dinheiro dá muita felicidade para quem tem pouco, mas ajuda pouco quem já tem muito.
Fico, ainda, a me questionar... o que é felicidade?, qual o patamar a que deveremos chegar para nos sentirmos plenamente felizes? Sinto a minha felicidade em jogo, com todas essas questões...
Em recente entrevista, o psicanalista Flávio Gikovate defendeu a teoria de que o ser humano não está preparado para a felicidade, e vive “sabotando” as possibilidades de alcanlçá-la. Por exemplo, o indivíduo define como seu sonho, seu protótipo de felicidade e realização, adquirir um determinado carro. A probabilidade de ele procurar – mesmo que inconscientemente - que haja qualquer eventualidade que apague do objeto de desejo a aura que o sonho embute, e o transforme em algo abaixo do que seria o ideal, para que ele possa usá-lo tranqüilamente e não precise conviver com a insuportável sensação que já atingiu plenamente o que o faria feliz – tendo em vista não ser isso verdade mesmo – é muito grande. Alarmantemente, o mesmo raciocínio pode ser usado em nossas relações interpessoais, principalmente as de fundo romântico.
Só posso concluir concordando com o filósofo Thomas Hobbes, quando disse que a felicidade é o prosperar contínuo do desejo. Essa mesma felicidade, que “brilha tranqüila, depois de leve oscila, e cai como uma lágrima de amor”.
Aguardo outros estudos sobre felicidade. Quem sabe, no próximo, a felicidade é associada a baixas na taxa de colesterol!

3 de mai. de 2006

Shhhhhhhhhhhh!!!

Há coisas que a gente não percebe por serem muito pequenas para serem vistas; outras, por serem imensas!
Eu estava em um shopping center há alguns dias, sentada, tomando café e lendo, quando despertei para o universo ao meu redor. Olhei em volta, pessoas passando, algumas apressadas, algumas sorrindo, algumas absortas em seus pensamentos. A vendedora forçando um sorriso para a cliente indecisa e aborrecida. O adolescente comendo pizza com a namorada. As colegas de trabalho tomando sorvete no intervalo entre os turnos. O casal apressado para não perder a sessão de cinema.
Tentei imaginar que aquele prédio era uma imensa televisão, e que o controle remoto estava em minhas mãos. De repente, eu resolvo baixar o volume, até que viramos filme mudo. Nada de música ambiente, nada de argumentos, conversas ou pedidos. Começo a ver todas as pessoas sem o som, sem aquela nuvem de freqüências sonoras que nos molha lá de cima. Seus movimentos - de alguns, desengonçados; de outros, em vigilância. Suas expressões faciais. A criança que quer impor à mãe a sua vontade negada – talvez um sorvete, talvez um brinquedo: ela não apenas berra, mas também se movimenta irritantemente, como se o som que emitisse não fizesse mais efeito. A garota, tímida, na loja de CD´s, sentindo-se completamente alheia e isolada do mundo: não está mais, o silêncio me fez percebê-la. As amigas que fingem conversar, enquanto, na realidade, estão avaliando a aparência uma da outra: seus cabelos, seus sapatos, suas maquiagens. O grupo de adolescentes, que insistem em movimentos caricatos para provarem aos outros – e a si mesmos – que fazem parte de uma determinada tribo.
É interessante observar as pessoas e as situações sem o som. Qualquer dia desses, farei esse mesmo exercício em uma feira livre!
Partindo, então, desse prazer de, às vezes, nos abstrairmos de todo e qualquer impulso sonoro, resolvi listar alguns momentos em que o silêncio nos é perceptível, e extremamente reconfortante:
- após o ensaio de saxofone do vizinho;
- ao desligar a TV, minutos depois do início do horário da propaganda política eleitoral;
- conseguir ouvir o virar da página do livro que estamos lendo;
- o cessar da chuva da madrugada;
- o sorriso cúmplice e apaixonado, que dispensa palavras;
- o exato momento em que o filme se encerra, e as luzes do cinema se acendem;
- o consentimento de um abraço, a partir de um olhar;
- perceber o momento em que a pilha do relógio da sala acabou.

A magia do silêncio está em termos consciência de que ele é extremamente frágil, uma bolha de sabão a ser estourada a qualquer momento. E então, mergulharmos, novamente, em nosso universo de músicas, inflamados debates e todos os demais instrumentos da orquestra que toca a sinfonia de nossa selva de pedra.

1 de mai. de 2006

Cansei-me de Esparta... Vou a Atenas!


Cansei-me de Esparta!
Cansei-me de obedecer hora pra acordar, hora pra dormir, hora pra comer, hora pra trabalhar... cansei-me de obedecer hora. Mas, sobretudo, cansei-me de obedecer! Quero dar férias não-remuneradas ao meu relógio e às minhas obrigações. Quero dormir tarde, acordar tarde... quero não saber de que horas fui dormir, muito menos de que horas acordei! Quero, por alguns dias, cheirar a vinho e maresia.
Em Atenas sou livre, sou feliz, sinto minhas asas e posso voar.
Quero, portanto, dar férias, de mim, ao Estado – ele merece!
Resolvi viajar. Durante três dias esquecer celular, buzina e compromissos. Esquecer contas a pagar, amores mal resolvidos e metas a alcançar. Minha única meta será dedicar-me ao bom papo, à gelada água de côco na beira da praia, ao protetor solar com cheiro de canela e ao crepe doce com bola de sorvete ao pôr-do-sol. Embriagar-me de álcool e tranqüilidade. Entregar-me aos banhos de piscina noturnos e às taças de vinho, ao flerte descompromissado, e alegremente ignorar a existência da Internet (inter o quê?).
Ouvir reggae, dançar descalça, fumar cigarro de menta, tomar sorvete artesanal e passar horas nas piscininhas formadas quando a maré fica baixa e as pedras ficam à vista.
E o melhor de tudo... não me sentir culpada por ignorar, enquanto durem esses deliciosos momentos, a vida espartana. Pois ela continua lá, frenética, sonora, corrida, resfolegante, esperando por mim... tenho certeza!

26 de abr. de 2006

A Matemática, O Mal de Amor e Harry e Sally


Quando estou arrasada de amor, desiludida ou achando que o universo conspira contra mim nas questões açucaradas (e deliciosas) do coração, remeto-me a um filme do tempo em que a escova progressiva ou a China ainda não estavam na moda: Harry e Sally – Feitos um para o outro. Quem não se lembra da cena em que a Meg Ryan simula um orgasmo feminino na frente do Billy Cristal, num restaurante cheio de gente?
Harry e Sally se conhecem, e, a princípio, não conseguem ver nada de saboroso em uma convivência entre duas pessoas tão diferentes. Alguns anos depois, voltam a se encontrar, e, mais algum tempo depois, passam a desenvolver uma íntima amizade, passam a perceber os prazeres que as diferenças agregam à convivência, em detrimento das naturais incompatibilidades. Mas um espectro marca toda a sua relação: poderão um homem e uma mulher ser amigos sem o desejo de dormirem juntos? Acabará o sexo com uma boa amizade? E será a amizade o caminho mais óbvio para um amor inevitável? Qual a fronteira que separa o amor fraternal, a admiração e o companheirismo da paixão?
Gosto de imaginar as pessoas como números. Sabemos que eles existem em infinidade. Cada número é único e definido, mas é da combinação dos números que saem os mais diversos e imprevisíveis resultados – às vezes indeterminados! Conheço algumas pessoas que me lembram os números complexos... e aqui sem trocadilhos!
Mas, devaneios aparte, muitos defendem que a paixão entre duas pessoas pode ser simplificada a uma explosão (temporária) de hormônios, e, naturalmente, com o passar do tempo, ela diminui – até porque, senão, não conseguiríamos fazer mais nada! A paixão corrói, queima, transforma, machuca, acelera o ritmo cardíaco e nos torna mais ansiosos... mas é uma delícia! Uma paixão nos reanima, nos torna mais vivos, faz bem pra pele, faz-nos atravessar um mês de agosto nos sentindo ensolarados, dá forma ao que não tem forma! Nunca me arrependi de nenhuma paixão que vivi, no máximo lamentei a parte de mim que ficou com cada uma delas...
Existem os que buscam o amor idealizado, e deixam de perceber o que os rodeia; existem os que acham q nunca o vão encontrar, e decidem se conformar com a primeira oportunidade que surge; existem os inseguros, que não se acham capazes de achar satisfação em um único relacionamento, e estão sempre de passagem... mas existe, acima de tudo, a busca pela pessoa que será a perfeita união entre o companheirismo e a paixão.
Mas, ainda prefiro acreditar que todos nascemos para aqueles momentos em que, no meio de tantas pessoas, em uma cruzada de olhares, sabemos que nossas vidas nunca mais serão as mesmas!

24 de abr. de 2006

FOR SALE

Pensei em entrar em liquidação. Colocar meu afeto a venda, na pechincha, e fechar a loja.
Tudo começou quando me decepcionei, profundamente. Pior do que decepção de amor romântico é decepção com amigo. Amigo é o dedão da mão, amigo é a cereja do doce, amigo é a gargalhada mais alta de nossa risada, amigo é a sétima cor do arco-íris. E me orgulho de ter alguns.
Um deles, em especial, que não vejo há quase dois anos, em uma conversa recente comigo, mostrou-se um ser humano tão mesquinho, umbiguista, prepotente, pernóstico, cruel... comigo! Comigo, que ofereci meu ombro para as suas dores de abandono. Comigo, que tomei porres para dividir com ele suas decepções. Comigo, que ri de suas piadas sem graça, que respondi bilhetes escritos em guardanapos em noites divertidas. Comigo, que fui com ele a uma linda praia celebrar a vida, depois de dias exaustivos de trabalho. Comigo, que chorei meu coração partido em seus ouvidos. Comigo, que pedi opiniões sobre as mais diversas inseguranças femininas... COMIGO!
E agora, depois de dois anos sem nos vermos – por motivos geográficos e afazeres cotidianos -, percebo que, durante esse período, enquanto eu imaginava “Como estará o meu amigo?”, “O que estará ele fazendo agora?”, “Será ele feliz?”, “Quando riremos juntos novamente?”, “Quando poderei dividir com ele essas questões de minha vida que ele fingia tão bem não se aborrecer em ouvir?”, ele apenas pensava “Ela é apaixonada por mim. Me amou, e me ama até hoje, e chora por mim diariamente. Coitada dela!”. Convenientemente, ele só chegou a essa – “brilhante!” - conclusão de dois anos pra cá, quando casou.
Se ele não fosse casado, e se eu não tivesse sido testemunha – e torcedora - de todo o processo amoroso dele, eu não me incomodaria com tal demência. Se nossa convivência não tivesse sido tão transparente e sinalizada, a cada minuto, com manifestações fraternas e de bem-querer, eu não me incomodaria com tal demência. É perfeitamente natural amigos se apaixonarem, mas não em nossa situação! Não confundindo sentimentos nobres em prol de uma auto-promoção ridícula!
Por isso, resolvi que entraria em liquidação. Meu afeto teria desconto agora. Últimas peças, por preço abaixo do tabelado. “Aproveite, que é por tempo limitado!”. Comecei a imaginar que todas as pessoas a quem dedico carinho e afeto fraternal estariam, agora, levianamente, da mesma forma, se vangloriando de um sentimento resultante de um surto psicótico privé.
Senti-me só, desgraçadamente só! Só, por imaginar que alguém tão próximo a mim possa não me conhecer a esse ponto... e o que é pior... só, por me surpreender tão ignorante em relação às pessoas que julgo amigas. Tão decepcionada comigo mesma! Repito... não que seja impossível alguém se apaixonar por um amigo, mas os verdadeiros amigos se conhecem. Se ele fosse realmente meu amigo, saberia que o brilho dos meus olhos é diferente quando estou apaixonada. Que não consigo encostar meus lábios quando estou apaixonada, que estou sempre com a sensação de quem precisa de um sal de frutas quando estou apaixonada, que o dia mais nublado é um jardim com borboletas quando estou apaixonada. Se ele realmente fosse meu amigo, saberia que essa atitude egocêntrica me magoou, sem precedentes.
Terminei essa conversa com esse (já não mais!) meu amigo, pensando em me colocar a liquidação, em vender o afeto que eventualmente eu ainda estivesse disposta a dividir.
Foi então, que me ocorreu um pensamento libertador, e depois desse pensamento, sorri, e fui dormir sem precisar nunca mais me preocupar com esse assunto: esse é um problema dele! É uma necessidade doentia dele imaginar que um amor fraternal precise ser distorcido dessa forma, para ele se sentir seguro. O problema é dele, e não meu!
Não estou mais em liquidação. O bazar fechou. Meu afeto pode não valer muito, mas saiu da promoção. E, amigos queridos - e poucos –, que eu eventualmente tenha... amo-os, verdadeiramente.

22 de abr. de 2006

SE

Conheci o Rudyard Kipling lá pelos meus catorze anos. Eu era uma adolescente atormentada por minhas dúvidas – a vantagem da tão proclamada maturidade é que hoje sou atormentada muito mais por minhas certezas!
Mas, na época de minhas espinhas mais abundantes, um amigo de meu pai me apresentou esse escritor. Aquele senhor, que eu já tinha acolhido também como MEU amigo, era – e ainda é! – bastante simpático e comunicativo, e sempre que podíamos, transformávamos nossas conversas de poucos minutos em lembranças de horas extremamente agradáveis! Ele tinha uma pasta preta, e dentro dela carregava uma infinidade de folhas, cada uma com um desenho ou um texto diferente.
Nesse dia, em especial, ele tirou esse poema, IF, da pasta. Segurou a folhinha com uma das mãos, e ergueu o outro braço de forma solene, tentando assumir ares de orador. De primeira, achei a cena interessante e até engraçada, até porque ser imprevisível era o q ele tinha de mais previsível!
Só consigo descrever nosso encontro até aí, pois quando ele começou a ler o texto, eu fui brutalmente tomada por aquelas palavras e mergulhei em uma espécie de transe! É impressionante como esse poema me afeta de forma devastadora! Lembro que a minha sensação, enquanto ele lia e aparentemente gesticulava, era de estar desbravando, descobrindo, me transformando.
Ele deve ter percebido a minha reação – ou a ausência dela – e, ao fim de sua leitura, deu-me a folhinha. Na época, tirei algumas cópias, transcrevi o poema para alguns cadernos, de forma que sempre o tinha perto de mim para ler e tentar resgatar a mesma emoção daquele momento.
Hoje, já não preciso usar desses artifícios, tenho o poema salvo em documento de Word em meu computador, mas ainda guardo aquela folhinha meio rasgada e amarelada, como prova de que existia vida antes de tanta tecnologia.
Muito tempo depois foi que tive a curiosidade de pesquisar sobre o Rudyard Kipling. Na verdade, por um bom tempo eu evitei para não me decepcionar, pois dificilmente qualquer outra obra dele me apaixonaria naquela intensidade. De qualquer forma, descobri, dentre outras coisas, que ele nascera na Índia, em Bombaim (eu sinto um estranho prazer em pronunciar essa palavra. Pego-me agora repetindo-a em voz alta enquanto digito!), e em 1984 lançou O livro da selva, que se tornou internacionalmente um clássico para crianças, também conhecido pelo seu personagem principal: o pequeno Mowgli.
Brindemos, então, a Rudyard Kipling, e à tentativa de seguir os conselhos de um pai a seu filho sobre como ser um homem de bem.

SE

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!


Rudyard Kipling

19 de abr. de 2006

Pimenta de Cheiro e Flor de Maracujá



Mulher...
Minha primeira lembrança dela deve ser de meus quatro, cinco anos, na casa de meu avô, eu correndo com meus primos nos domingos de almoço da família, subindo na goiabeira ou chorando quando ela passava Merthiolate em meu joelho machucado. Na verdade, a primeira lembrança que me vem conscientemente é o aroma de pimenta de cheiro e flor de maracujá que ela exalava. Certamente – e há fotos que confirmam as minhas suspeitas – tivemos muitos outros momentos de cumplicidade anteriores, quando ela sorria e me pegava no colo, eu ainda bebê, maravilhada, desde já, com toda aquela beleza também sorria, desdentadamente. Essa admiração me perseguiu e existe até hoje dentro de mim, e foi fundamental em minha formação como mulher. Mas, nessa época, eu ainda não sabia da força que ela tinha, não sabia que era uma mulher destemida, com o propósito, muitas vezes, de contrariar os outros para satisfazer seus sonhos e desejos – sempre ilimitados! Não sabia eu que ela tivera, ao mesmo tempo, sete namorados, até que conhecera meu avô, e resolvera, com ele, dividir felicidades e agruras.
Mas, voltando aos domingos de almoço... lembro do quintal – todas as crianças deveriam ter direito a um quintal! - , e de um quartinho construído nos fundos, com uma grande escada – pra criança, todas as dimensões são mirabolantes - , onde meu tio mais velho morara durante sua juventude, antes de casar. Ignorávamos esse fato, e até duvidávamos! Eu e meus primos sempre imaginamos que dentro daquele quartinho, de paredes brancas descascadas, havia um laboratório secreto, cheio de tubos de ensaio e porções ferventes e esfumaçantes, como as do Visconde de Sabugosa.
Sempre fui muito ligada a eles. Meu avô, sempre delicado, amoroso, beijoqueiro e ciumento; ela, sempre disciplinando e ordenando, reclamando da postura, do jeito de andar... Hoje, ao lembrar disso, vejo como a fusão dos dois me deu todo o amor que eu precisava, e constato que fui uma criança insuportavelmente feliz!
Com ela, eu ia de mãos dadas ao centro da cidade, onde entrávamos em inúmeras lojas, provávamos centenas de roupas e calçados, muitas vezes sem nada comprar, e depois, não satisfeitas, lanchávamos caldo de cana com bolo de saia – para mim, a parte favorita do passeio!. Perdi a conta das vezes que confundiram-nos com mãe e filha, para orgulho de ambas, tamanha a semelhança física. Mas era verdade, eu era ela, ela era eu, duas frações de uma única pessoa, caminhando juntas. Ela me obrigava a comer os alimentos de que eu não gostava, mas supostamente faziam bem à saúde. Ela segurava a minha mão quando eu não tinha equilíbrio para andar sozinha, ela me guiava na vida, e era impossível imaginar-me sem ela.
Os anos foram passando, e eu, que costumava olhar para cima para sempre admirar aquela bela e forte mulher, acabei tendo que curvar o pescoço para beijá-la. Não fazemos mais os passeios ao centro da cidade, são muito cansativos, e os shopping centers são uma alternativa bem mais confortável. Substituímos o bolinho de saia e o caldo de cana pelo sanduíche natural e o suco de frutas com soja. Mas continuamos sendo uma. Eu sou ela, e ela, eu. Eu a obrigo a comer alimentos de que ela não gosta, mas supostamente fazem bem à saúde. Eu seguro a sua mão quando ela não tem equilíbrio para andar sozinha. Hoje, ela já não me guia na vida. Somos como dois golfinhos nadando, lado a lado, em sincronia.
Os anos nos fizeram bem, continuamos sendo uma só, em idades diferentes, vivendo-as simultaneamente. Recentemente, ela deu provas de que é bem mais forte do que qualquer um pudesse imaginar. Qualquer um, menos eu! Desde pequenininha, quando senti pela primeira vez aquele aroma de pimenta de cheiro e flor de maracujá, eu já sabia: a minha vovó é imortal!

12 de abr. de 2006

A Arte de Comer Caranguejo

Comer caranguejo é uma arte. Arte porque, haja cuidado, haja técnica, haja desleixo... sim, você vai se sujar! Comer caranguejo, então, é a arte da lambança, uma homenagem ao sabor e ao rosto melado.
Comer caranguejo começa muito antes de sentar e degustá-lo. Começa num dia de sol, bonito e quente, de preferência um domingo. Começa com os telefonemas para convocar os participantes do banquete tropical. Começa na vontade de sentar com os amigos, em uma palhoça na praia, tomar água de côco (cerveja,guaraná...) bem gelada, sentindo o cheiro de bronzeador de cenoura que a moça da mesa ao lado está usando.
Amigos e pessoas próximas, sim. Nunca fiz amigos comendo brócolis... Comer caranguejo é um ato íntimo, de pessoas que têm cumplicidade – para primeiros encontros românticos e demais situações delicadas, existe o higiênico e civilizado ensopado de caranguejo!. Mas este, apesar de saboroso, não substitui o caranguejo propriamente dito. Nada substitui o prazer de arrancar dos recipientes ensopados de caldo e verduras o fumegante e vermelho caranguejo, queimar os dedos, ralá-los tentando quebrar as patas, salpicando em você – porém não apenas em você! – o caldo, lamber os dedos, travar uma luta para conseguir tirar dali algumas migalhas de sua saborosa carne... e é nessa hora que você percebe como a Lei de Murphy é perfeita, quando algum celular na mesa, que há horas não tocava, resolve disparar, e ninguém está de mãos limpas para atendê-lo. E entre um caranguejo e outro, risadas gostosas, um delicioso banho de mar, uma partida de frescobol, encontros inesperados, chuva de areia causada por crianças que brincam, o triângulo do vendedor de dindin, de doce, de amendoim, de ostras, de picolé Kibon...
Exausto, após dezenas de batidas, de patas, de lambe-dedos, do sol e do cheiro de cenoura (sim, a moça ao lado decidiu fritar, e passa mais uma porção do bronzeador!) você decide comer, e pede um ensopado, uma batata-frita, um peixe... algo para “complementar” a refeição.
Termina mais um domingo na praia, divertido, saboroso e inesquecível!! Teclo agora com os dedos machucados, da minha investida de hoje... dedos machucados, porém alma extremamente feliz!!

5 de abr. de 2006

O Garçom de Botequim Que Falava Francês e Outros Acontecimentos da Semana

Em meio a uma semana calma e comum, deparei-me com o garçom de botequim que falava francês! Não vou negar que esse fato realmente ficou entre os marcantes da semana, afinal, não é todo dia que vemos um poliglota servindo em mesa de bar pequeno e barato!

Adoro botequins, e isso não é novidade. Poucas mesas, tira-gostos baratos, bebida em doses sempre maiores que nos demais estabelecimentos (e com variedade limitada), e as boas surpresas! Não é em todo lugar que podemos ter a minha satisfação de poder tomar uma crush, ou um guaraná Baré, ou ainda nos aventurarmos a provar uma marca de cerveja cuja melhor propaganda mais parece um calendário de oficina mecânica de beira de estrada!.

Da mesa onde eu estava – na calçada, sempre! - , via um DVD de um show de axé, ou forró – ignoro- , mas era um dos dois, pois tinha aquelas interessantíssimas bailarinas de cabelos tingidos e micro-saias brancas, dançando com parceiros que deviam ter metade de seu peso.

E nesse momento chega o garçom. Garçom de botequim é sempre extremamente simpático, ou está sempre correndo, para atender, sozinho, os seis pedidos feitos de uma vez... uma pinga na mesa um; um frango a passarinha na mesa 2 (mas vê lá, hein, garçom, não vai me trazer só asa de frango!). Nesse caso, o garçom era uma estranha fusão dessas duas características. Chegou em meio aos torpedos das outras mesas para atender a minha. Eu, freguesa cativa de botequim, já estava com o meu pedido na ponta da língua, para que o pit stop do garçom não fosse além do planejado. Quando o pedido foi prontamente atendido, soltei um distraído merci beaucoup, que foi rebatido com um instantâneo il n´y a pas de quoi.

Esse breve diálogo não me perturbou durante três vodkas, quando comecei a refletir sobre o ocorrido. O que leva um garçom de botequim a falar francês?, será que ele também responderia em alemão, russo ou japonês?. Senti uma quase irresistível vontade de chamá-lo para conversar sobre os mais diversos assuntos que me afobaram durante essa semana: desde o banimento do leite da merenda das escolas públicas americanas até a bombástica noticia anunciada pelas indústrias de brinquedos de que a Barbie estaria se reconciliando com o Ken, anos após tê-lo trocado por um bonequinho metrossexual de meia tigela... Teria a Barbie cansado da falta de conteúdo do namorado?, estariam as crianças americanas com o colesterol alto justamente por causa do leite, e não dos sanduíches do McDonald´s?? Creio que só uma pessoal com um perfil tão pitoresco quanto esse garçom poderia entender as minhas dúvidas e buscar comigo soluções alentadoras! Mas me controlei, não o chamei! Em vez disso, diverti-me – enquanto ainda havia vodka em meus devaneios – tentando imaginar onde ele havia aprendido francês, e com que finalidade, e, sobretudo, por que ele era garçom de botequim! Seria ele um agente secreto, procurando pescar confissões de clientes que freqüentam botequins achando ser lá um lugar seguro para se conversar sobre os mais escusos assuntos?, teria ele perdido seu emprego e seu grande amor, e nada mais lhe restava se não servir caldinho de peixe e cerveja morna?

Fui dormir ainda com a mente iluminada (por várias cores) por todas essas conjecturas, ignorando que provavelmente ele escutou essa frase de algum cliente, ou pretende seguir carreira de garçom em algum cafe na França – juntando o que ganha de gorjeta, claro!

29 de mar. de 2006

Ao Som de "Carinhoso"


Sexta-feira à noite.

Estou aqui em casa, aproveitando o silêncio quebrado pelo saxofone do vizinho. É sempre uma sensação gostosa ouvi-lo, e me inspira sempre a escrever bobagens.

Ele sempre toca "Carinhoso", em um ritmo mais lento. Não posso assegurar q ele é um mestre em tocar tal instrumento, mas é gostoso ouvi-lo, ele vai conversando com a partitura, pouco a pouco fazendo as pazes e a devorando. Momento melhor é qdo ele acaba de tocar. Explico-me: não estou com isso tentando dizer q é um alívio ele acabar. Muito pelo contrário, o silêncio posterior sempre me dá oportunidade de ficar lembrando da melodia, repassando-a mentalmente e é claro, acrescentar detalhes ao antes sucedido q só minha imaginação fértil e ociosa é capaz!

Mas hoje deparei-me com uma surpresa: o meu saxofonista favorito (q nem sei q idade, preferências ou sexo tem) resolveu, sem nem mesmo saber, me pregar uma peça. Já estava eu aguardando ele começar a tocar "carinhoso", e eu mentalmente começar a acompanhá-lo com "Meu coração...", qdo, de repente, ele se rebela contra as minhas presunções e começa tocando o tema da Pantera Cor de Rosa.

Senti-me inicialmente traída, não vou negar! Desses medos q sentimos qdo algo novo, q foge à rotina q conhecemos - e q no fundo sempre aguardamos q aconteça - finalmente acontece. Mas, pouco a pouco, - pra ser sincera em uma fração mínima de segundos -, já estava feliz por ele aumentar o "nosso" repertório. Já fechei os olhos e comecei a imaginar nosso mais novo dueto. Enquanto aqui escrevo, tenho a agradabilíssima confirmação q a música seguinte é nada mais, nada menos q nossa velha conhecida "Carinhoso". Aaaaaaaaaaai, q deleite bom, como é bom abrir as portas e voltar pra casa. O novo nos dá sempre essa oportunidade. De valorizarmos aquilo q já temos!

Estamos agora na nossa fase 3. Ele (ou ela?), o q estará fazendo nesses minutos q sucedem de silêncio?, estará pensando, como eu?, estará gozando dos instantâneos e preciosos minutos q sucedem de silêncio?, estará tb repassando toda a melodia mentalmente pra ver se a retém, exatamente como foi tocada?...

Não sei.

Alegro-me de termos - eu e ele - mais um convidado para a nossa festa. A partir de hoje aguardarei sempre q ele toque essas suas músicas, para completar minha sexta à noite e fechar sempre mais uma semana - de dores ou delícias.

E, agora, de olhos fechado e imaginando tudo isso, fico me perguntando como duas pessoas podem se completar por alguns instantes - como acontece comigo nesses breves momentos de sexta à noite - e fico tentado imaginar qtas outras duas pessoas podem estar compartilhando de momentos assim nesse exato momento tb.

22 de mar. de 2006

Gianechini


Aos primeiros dias de novembro deste ano, houve uma comemoração de aniversário lá no meu trabalho. A minha chefe estava presente, e resolveu relatar um fato que ocorrera com a sua filha - deve ter entre 8 e 12 anos... não tenho certeza!
Mas o fato é que a menina se apaixonou perdidamente pelo Gianechini... perdidamente mesmo!!!!! Em meio aos nossos disfarçados risos, ela contava como tudo acontecera: a menina, certo dia, chegara para a mãe e confessara seu incondicional e febril amor pelo belo rapaz, que sem ele não conseguiria mais viver, que precisava ir vê-lo pessoalmente, que sem isso não conseguiria mais viver.
Nesse mesmo momento, eu pensava: como é bom ser criança, como nos iludimos e pensamos coisas tão bobas, sem nenhum sentido, intangíveis, e eu, em minha infinita arrogância, tive pena da pirralha... pena, como a gente tem de alguém, que anseia algo impossível, ridículo e inimaginável a qualquer pessoa com o mínimo senso.
Então, parei e pensei em minha vida... há poucas semanas, eu acompanhava a trajetória de um certo escritor. Apaixonei-me perdidamente por suas idéias, por suas contradições, por seu (único) sotaque, por seu jeito de movimentar seus lindos lábios e suas expressivas sobrancelhas... Horrorizada, e ao mesmo tempo admirada, comparei-me àquela pirralha. Qual a diferença entre nós???. Não sejamos ingênuos... muitas! Primeiramente, a facilidade de aceitar o fato e achá-lo extremamente normal. Segundamente, porque, apesar de, no fundo do meu ser, eu desejar desesperadamente que houvesse qualquer possibilidade de eu conhecê-lo, infelizmente, para a minha eterna e desgraçada constatação, eu percebi que eu cresci, e um dos maiores temores que eu tinha na minha vida se tornou realidade: eu deixei de acreditar!!!
Ai que dor!! Ai que desilusão!! Ai, que raiva de mim mesma! Apesar de eu desejar, desesperadamente, jamais eu sentiria aquele fio de esperança (saudável), da possibilidade, e me vi morta, sepultada, em meu sentimento.
Sentimento que eu só poderia compartilhar com aquela pirralha, que provavelmente não me criticaria, que me entenderia, que sofreria e alimentaria esperanças comigo.
Senti-me tão agradecida por esse (ridículo?) sentimento, que não me deixava dormir, comer, viver (e eu imaginava que o Gianechini provocava o mesmo sentimento nela).
O fato é que, na minha razão de adulta, tenho a certeza de que nunca poderei conhecê-lo, nem mesmo tirar uma foto e ser feliz para sempre, e nem poderei comprovar se a paixão se resume à admiração ou se é realmente dessas febres que nos consomem para sempre (pára com isso! Nem aos 15 anos, você teria direito a pensar essas bobagens!!)
E, de repente, flagrei-me com inveja daquela pirralha de não sei bem quantos anos, mas que tinha seus mais (ainda) livres sonhos, aspirações, desejos – realizados ou não, mas com muita fé!. E eu, adulta, “equilibrada”, “ponderada”, apenas me sentia extremamente frustrada e com aquele infinito e desolador, desesperado medo (ou certeza!) de que nunca teria meu sonho realizado. Talvez seja isso que me falte... a inocência de acreditar no impossível... pois afinal... quando menos se espera... ele pode nos surpreender e acontecer... será que estamos preparados para vivê-lo?????
Enquanto isso,fico aprisionada aqui, em meu corpo de 30 anos, e com aquela vergonhosa intenção de “regredir” aos meus 12 anos e acreditar que os sonhos podem se tornar realidade, e poderei sorrir, por meros e eternos 10 minutos.
E, caso haja, ainda, alguma dúvida... o Gianechini esteve aqui em minha cidade... e a sonhadora pirralha hoje dorme feliz, e menos atormentada do que eu, abraçada com o seu troféu , a tão desacreditada - e até então risível - foto tirada com seu “muso”.

15 de mar. de 2006

O Que Judah Diria a Raskólvikov




Raskólnikof, aos 23 anos, professor de línguas, universitário e residente em São Petersburgo, larga tudo e entrega-se à miséria absoluta, acreditando em uma teoria desenvolvida por ele, e ele mesmo estando disposto a prová-la.

No mundo, segundo ele, existem duas subdivisões de pessoas: as ordinárias e as extraordinárias. Segundo o próprio personagem, “à primeira, pertencem , em geral, os conservadores, os homens de ordem, que vivem na obediência e têm por ela um culto. (...) O segundo grupo compõe-se apenas de homens que transgridem a lei, ou tentam transgredi-la, segundo os casos. Naturalmente os seus crimes são relativos e de uma gravidade variável” .

Raskólnikof acreditava fazer parte do segundo subgrupo. Acreditava que, tendo recursos financeiros, a que custo fosse, tinha a acrescentar à sociedade e à História algo que justificasse os meios de alcançar esses subsídios primários.

Ao descobrir que não era como Napoleão ou César, e que não seria absolvido pela História, nem – principalmente – por si mesmo – Raskólvikof passa por processos de auto flagelação pelas atrocidades cometidas. Nesse percurso, somos convidados a visitar, com ele, becos, tabernas e pequenos cômodos fétidos, povoados de personagens miseráveis – financeira ou espiritualmente - que lutam para preservar sua dignidade contra as várias formas da tirania, como Razumikine; ou seu orgulho e status social, como Petróvitch.

Essa riquíssima narrativa, com tons existencialistas e niilistas, nos leva a questionar em que se constitui, realmente, o castigo. O castigo ao crime - antes de ser a punição aplicada pela sociedade, em busca da pretensa redenção moral - é o caminho que o leva a ela. Ao contrário do que poderia imaginar, todo o tormento físico e psicológico de Raskólnikof consiste na culpa, na não-aceitação, na auto-punição moral ao que fez, ao ponto de ele mesmo precisar se entregar. A partir desse momento, quando lhe é aplicado o castigo da sociedade, acomete-se sobre ele uma sobriedade e percepção de crescimento, de redenção dele para consigo mesmo, e em conseqüência, para com a sociedade com que vive. Nas próprias palavras de Dostoievski, “aqui começa uma segunda história, da lenta transformação da um homem, de sua regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para o outro, travando relações com uma nova e até agora completamente desconhecida realidade”.



...



Judah Rosenthal, oftalmologista e um dos pilares da sociedade Nova Iorquina em que vive, vê-se sufocado por um dilema, ao ver seu mundo prestes a desabar quando sua amante, Dolores, ameaça revelar ao público o relacionamento extraconjugal e uma fraude financeira cometida pelo médico, quando o mesmo tenta pôr fim ao caso.

O dilema consiste no dualismo de sentimentos, no conflito vivido por Judah, quando se vê em volta de seus abafados valores religiosos e morais, que julgava não possuir, enfatizados pela voz de seu pai vindo de sua mais distante infância “os olhos de Deus tudo vêem” (terá sido por isso que ele tenha se tornado oftalmologista???). Aturdido com as ameaças da amante, ele busca aconselhamento com o rabino Ben, seu amigo e paciente, e com o irmão, não isento de ligações com pessoas do crime organizado. Enquanto o primeiro – que Woody Allen faz com que, não por acaso, sofra de uma doença que fatalmente irá levá-lo à cegueira (mas nem por isso ficando ele cego à razão!) - lhe sugere a confissão dos pecados; o segundo propõe uma solução mais pragmática: o assassinato da amante, o que acaba sendo posto em prática. Judah baseia-se, então, para justificar seu ato, na frase que considero mais forte do filme: “Deus é um luxo ao qual não posso me dar!”.

Judah, assim como Raskólnikof, faz parte do primeiro subgrupo de seres humanos. A angústia pelos seus erros o consome, e isso o leva a um limbo moral que quase faz com que ele se entregue.

Woody Allen, no seu melhor estilo Ingmar Bergman, proporciona ao seu personagem um desfecho que provavelmente desagradaria Dostoievski. Apesar do crime, da quase confissão e do purgatório moral e quase insustentável a que o personagem é submetido, Judah convive com seus demônios, e, ao longo do tempo, chega até a espaçar a infinita dor e remorso que sente, fingindo por vezes levar uma vida que nunca passou por percalços tão obscuros. Na seqüência final, olhar para o passado através de outro prisma, nos faz perceber o quanto somos capazes de encontrar na vida brilho, mesmo diante de todas as dificuldades:

“Durante toda a nossa vida, enfrentamos decisões penosas, escolhas morais. Algumas delas têm grande peso, a maioria não tem tanto valor assim. Mas definimos nós mesmos pelas escolhas que fizemos. Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas. Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nós, com a nossa capacidade de amar, que atribuímos sentido a um Universo indiferente. Assim mesmo, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até encontrar prazer nas coisas simples, como sua família, seu trabalho, e na esperança de que as futuras gerações alcancem uma compreensão maior.”



O Livro: Crime e Castigo – Fiódor Dostoievski

O Filme: Crimes and Misdemeanors (Crimes e Pecados) – Woody Allen - 1989

8 de mar. de 2006

Isabel Allende e Seu País Inventado



Acabo de ler MEU PAÍS INVENTADO, de Isabel Allende.

Apaixonei-me – dessas paixões arrebatadoras à primeira vista – por seus romances quando li A CASA DOS ESPÍRITOS, seu primeiro publicado. Desde então, tenho aguardado a cada ano, com a mesma ansiedade com que aguardo um novo filme do Woody Allen, seus novos livros.

Isabel Allende fala em seus romances sobre amor, perdas, sobrevivências, lutas, fé... características visivelmente exacerbadas em nós, latinos! Usa as mãos, mas certamente escreve com o coração. E assim foi também com DE AMOR E DE SOMBRAS, EVA LUNA, CONTOS DE EVA LUNA, O PLANO INFINITO, PAULA (em minha opinião, este e A CASA DOS ESPÍRITOS são imbatíveis!), AFORDITE (uma deliciosa e afrodisíaca mistura de receitas e contos), FILHA DA FORTUNA, RETRATO EM SÉPIA, e tantos outros, também apaixonantes.

É impossível não se envolver com seus personagens excêntricos. Sempre que começo a ler - ou reler – um de seus romances, tenho a sensação que estou sentada, tomando chá em uma tarde nublada de domingo e conversando com ela, seus personagens e fazendo parte de suas tramas. Pego-me freqüentemente frustrada por não poder opinar sobre alguns destinos.

Mas voltando ao MEU PAÍS INVENTADO, Isabel Allende passeia descrevendo a saudade, a nostalgia, o abandono, a vontade de regressar diante da impossibilidade – tema também lindamente descrito pelo Millan Kundera, em A IGNORÂNCIA -, a forma como a nostalgia faz-nos lembrar de coisas que nunca aconteceram, de como lembramos, de forma turva de certos fatos e situações, e, finalmente, de que somos nós os países, as fronteiras, as crenças, os costumes... e carregaremos essa bagagem para onde quer que vamos!

Durante esse passeio pelo livro, fica difícil não se encantar com o Chile, ou com o Chile visto através de seus olhos. Durante a viagem, pegam carona com ela figuras como Pablo Neruda, Violeta Parra, e outros que cantam a dor e o amor de forma belíssima e comum a todos nós.

Não creio ser possível terminar essa leitura e não fazermos, cada um de nós, o perfil de nossas vidas, e de nosso país... inventados!

1 de mar. de 2006

Um Pingo de Pablo



Meu desejo é ter Pablo.
Pablo é um rapaz que conheci há algum tempo. No dia em que o vi dançando, sem a mínima graça ou harmonia, movendo-se de forma despretensiosa, totalmente alheio ao ritmo da música, soube que ele havia sido feito para mim.
Aliás, se eu fosse uma deusa, faria um igualzinho só pra mim. Mas, como Pablo não está à venda - e, certamente, se estivesse, eu não iria querer - , contento-me com o meu Pingo.
Pingo é o meu simpático cachorrinho, com quem brinco e em quem dou banho de mangueira em domingos ensolarados. Desses em que tomamos banho os dois , lambuzados na grama.
Ideal mesmo seria poder fazer esse programinha lambuzada com Pablo. Mas aí já seria outro desejo... serve desejo duplo??????

22 de fev. de 2006

Genealogia

Nasci do casamento do Amor com a Insegurança. Em minha infância, comi meus pais, tentativa frustrada de fugir de minha herança genética.
Meus irmãos - Hipocrisia, Alienação e Prepotência -, pareciam não se importar e não questionar coisa alguma (sim, somos sobrinhos da Dúvida), felizes em seu mundinho cinza. Comi a Hipocrisia e a Prepotência – essa última me proporcionando um dificílimo trabalho de digestão!. Decidi, por cansaço e por achar q não seria prudente, poupar a Alienação. Poderia precisar de um ombro fraterno para muitas situações futuras!
Minha infância foi cinza, tornando-se parda a minha adolescência até que negra a minha entrada na vida adulta. Após um breve e estéril casamento com o Pessimismo, morri. Como sou neta do Esquecimento, e a Morte – segundo me foi dito – não passava de um parente distante – ignorei o fato. Levantei, ainda envolvida em brumas, e segui. Pisei descalça no chão frio, senti o gosto de ferro em minha saliva e excessiva sudorese. Comi algodão. Conheci o Delírio, mas nossa relação durou pouco, pois o injetei em minha veia! Casei com a Dissimulação, e me envolvi extra-conjugalmente com o Fracasso.
Então conheci a Lucidez – na verdade, já éramos velhas conhecidas, mas só prestei realmente atenção nela depois que a Alienação conheceu a Morte. Minha irmã morreu de tédio. Transformou-se, inexplicavelmente. Mudou do estado sólido para o líquido, e finalmente, para o gasoso. Isso tudo em um par de minutos! Tentei sorvê-la, exalá-la, mas ela parecia finalmente ter aceitado seu parentesco - ainda que distante - com a Morte. Senti-me só, e a Lucidez me fez companhia. Uma companhia desagradável, inconveniente, que aparecia sem ser convidada. Essa companhia me custou o Desejo e a Fragilidade – antigos companheiros. Foi então que a Dissimulação pediu divórcio, deixando-me com Insegurança (que herdara o nome da avó) e Auto-Piedade.
Cansada, já com os pés tão gelados, aquele gosto férreo ainda na boca, e banhada de suor, abri os olhos, e percebi que estava com a Morte. Estivera ali durante todo aquele tempo, eu apenas sonhara que não (resquícios ainda de Delírio em minhas veias!). Comi Insegurança e Auto-Piedade (será que eles realmente existiram?), e deitei-me feliz, no chão frio.
Será que existi, será que vivi? Cerrei os olhos e adormeci.

15 de fev. de 2006

O Baile de Máscaras

O Baile de Máscaras


Existem certas coisas que são imperceptíveis aos olhos puros. Coisas essas que só conseguem ser vistas por aqueles que já esqueceram como é bom ser criança.
O menino entrou em casa, como fazia diariamente. Mas, ao abrir a porta, deparou-se com uma nova situação, nunca vista por ele antes, muito menos em sua casa. O que está havendo mamãe? – perguntou o menino ao ver todas aquelas pessoas com aqueles adornos estranhos cobrindo suas faces e conversando alegremente, como se fosse uma festa. Não que ele tivesse algo contra festas, mas algo havia naquela, em especial, que o desagradava, e ele não sabia exatamente o que era. Talvez tenha sido isso que o tenha desconfortado ao entrar em casa, naquela estranha festa aquele dia: a incerteza de seus sentimentos. Ele estava se deparando com uma nova situação, até então desconhecida para ele: a incerteza, um sentimento do qual as crianças , seres de coração puro, são protegidas, pois em suas vidas só existe lugar para a sinceridade, o amor, o carinho, o fascinante mundo de descobertas, de Robinson Crusoé; de princesas salvas por valentes príncipes de ferozes dragões; da casa feita de doces da malvada bruxa; das tardes de domingo na casa da avó, comendo biscoitos ainda quentinhos e subindo na goiabeira; das inúmeras brincadeiras inventadas na hora para divertir amigos recém descobertos; de mertiolate no corte do joelho; do beijo de boa noite da mãe... Enfim, um mundo sem mentiras ou frustrações , de sinceridade e verdade. Mundo este que as pessoas costumam esquecer quando crescem, para dar lugar às coisas mais “sérias” da vida. Some, então, o prazer de andar abraçado na chuva, de se lambuzar comendo aquela fruta gostosa e de dar aquela gargalhada sincera, daquelas que ressoam lá no fundo do nosso coração.
Ao ouvir a pergunta do filho, a mãe, então, surpreendeu-se. Ué, filho, qual é o problema? É o nosso baile de máscaras!. O menino, então, olhou para a mãe, e custou a reconhecê-la. Calma, filho, entre e bote também a sua máscara. O menino hesitou ainda por um momento, não estando por completo adaptado àquela nova situação. Mas, de repente, lhe ocorreu que aquele baile de máscaras sempre existira, não só ali em sua casa, mas em todos os lugares, só que ele, com sua mente pura e seu coração inocente, era incapaz de perceber ou de fazer parte daquele estranho baile. A vida é o palco, onde fazemos o nosso baile e botamos nossas máscaras. Máscaras essas que até hoje ele não precisara usar, pois , a ele, bastava ser ele mesmo.
Ele percebeu, então, que, a partir de agora, teria que fazer permanentemente parte daquela festa. Para cada situação, para cada baile, ele teria que usar uma máscara diferente. Em casa, usaria a máscara de bom filho, bom irmão. Em seu colégio, a máscara de aluno aplicado ; com os amigos, a máscara de homem valente, capaz de enfrentar grandes desafios; em seu trabalho, a máscara de homem sério ; com a família, a máscara de homem devoto e preocupado; com a esposa, a máscara de homem apaixonado... enfim, são tantas as máscaras que a partir de agora ele vai ter que usar, que vai chegar um dia em que ele vai parar, se olhar no espelho., e não vai se ver, não vai se encontrar, pois , naquela confusão, naquela troca interminável de máscaras, ele esqueceu como era o seu rosto, e ao se ver não se reconheceu. Não soube, sequer, se aquilo que estava sendo refletido no espelho era a sua face, ou mais uma das inúmeras máscaras que estava acostumado a usar.
Bem vindo, você também, ao baile de máscaras!