15 de mar. de 2006

O Que Judah Diria a Raskólvikov




Raskólnikof, aos 23 anos, professor de línguas, universitário e residente em São Petersburgo, larga tudo e entrega-se à miséria absoluta, acreditando em uma teoria desenvolvida por ele, e ele mesmo estando disposto a prová-la.

No mundo, segundo ele, existem duas subdivisões de pessoas: as ordinárias e as extraordinárias. Segundo o próprio personagem, “à primeira, pertencem , em geral, os conservadores, os homens de ordem, que vivem na obediência e têm por ela um culto. (...) O segundo grupo compõe-se apenas de homens que transgridem a lei, ou tentam transgredi-la, segundo os casos. Naturalmente os seus crimes são relativos e de uma gravidade variável” .

Raskólnikof acreditava fazer parte do segundo subgrupo. Acreditava que, tendo recursos financeiros, a que custo fosse, tinha a acrescentar à sociedade e à História algo que justificasse os meios de alcançar esses subsídios primários.

Ao descobrir que não era como Napoleão ou César, e que não seria absolvido pela História, nem – principalmente – por si mesmo – Raskólvikof passa por processos de auto flagelação pelas atrocidades cometidas. Nesse percurso, somos convidados a visitar, com ele, becos, tabernas e pequenos cômodos fétidos, povoados de personagens miseráveis – financeira ou espiritualmente - que lutam para preservar sua dignidade contra as várias formas da tirania, como Razumikine; ou seu orgulho e status social, como Petróvitch.

Essa riquíssima narrativa, com tons existencialistas e niilistas, nos leva a questionar em que se constitui, realmente, o castigo. O castigo ao crime - antes de ser a punição aplicada pela sociedade, em busca da pretensa redenção moral - é o caminho que o leva a ela. Ao contrário do que poderia imaginar, todo o tormento físico e psicológico de Raskólnikof consiste na culpa, na não-aceitação, na auto-punição moral ao que fez, ao ponto de ele mesmo precisar se entregar. A partir desse momento, quando lhe é aplicado o castigo da sociedade, acomete-se sobre ele uma sobriedade e percepção de crescimento, de redenção dele para consigo mesmo, e em conseqüência, para com a sociedade com que vive. Nas próprias palavras de Dostoievski, “aqui começa uma segunda história, da lenta transformação da um homem, de sua regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para o outro, travando relações com uma nova e até agora completamente desconhecida realidade”.



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Judah Rosenthal, oftalmologista e um dos pilares da sociedade Nova Iorquina em que vive, vê-se sufocado por um dilema, ao ver seu mundo prestes a desabar quando sua amante, Dolores, ameaça revelar ao público o relacionamento extraconjugal e uma fraude financeira cometida pelo médico, quando o mesmo tenta pôr fim ao caso.

O dilema consiste no dualismo de sentimentos, no conflito vivido por Judah, quando se vê em volta de seus abafados valores religiosos e morais, que julgava não possuir, enfatizados pela voz de seu pai vindo de sua mais distante infância “os olhos de Deus tudo vêem” (terá sido por isso que ele tenha se tornado oftalmologista???). Aturdido com as ameaças da amante, ele busca aconselhamento com o rabino Ben, seu amigo e paciente, e com o irmão, não isento de ligações com pessoas do crime organizado. Enquanto o primeiro – que Woody Allen faz com que, não por acaso, sofra de uma doença que fatalmente irá levá-lo à cegueira (mas nem por isso ficando ele cego à razão!) - lhe sugere a confissão dos pecados; o segundo propõe uma solução mais pragmática: o assassinato da amante, o que acaba sendo posto em prática. Judah baseia-se, então, para justificar seu ato, na frase que considero mais forte do filme: “Deus é um luxo ao qual não posso me dar!”.

Judah, assim como Raskólnikof, faz parte do primeiro subgrupo de seres humanos. A angústia pelos seus erros o consome, e isso o leva a um limbo moral que quase faz com que ele se entregue.

Woody Allen, no seu melhor estilo Ingmar Bergman, proporciona ao seu personagem um desfecho que provavelmente desagradaria Dostoievski. Apesar do crime, da quase confissão e do purgatório moral e quase insustentável a que o personagem é submetido, Judah convive com seus demônios, e, ao longo do tempo, chega até a espaçar a infinita dor e remorso que sente, fingindo por vezes levar uma vida que nunca passou por percalços tão obscuros. Na seqüência final, olhar para o passado através de outro prisma, nos faz perceber o quanto somos capazes de encontrar na vida brilho, mesmo diante de todas as dificuldades:

“Durante toda a nossa vida, enfrentamos decisões penosas, escolhas morais. Algumas delas têm grande peso, a maioria não tem tanto valor assim. Mas definimos nós mesmos pelas escolhas que fizemos. Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas. Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nós, com a nossa capacidade de amar, que atribuímos sentido a um Universo indiferente. Assim mesmo, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até encontrar prazer nas coisas simples, como sua família, seu trabalho, e na esperança de que as futuras gerações alcancem uma compreensão maior.”



O Livro: Crime e Castigo – Fiódor Dostoievski

O Filme: Crimes and Misdemeanors (Crimes e Pecados) – Woody Allen - 1989

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