19 de abr. de 2006

Pimenta de Cheiro e Flor de Maracujá



Mulher...
Minha primeira lembrança dela deve ser de meus quatro, cinco anos, na casa de meu avô, eu correndo com meus primos nos domingos de almoço da família, subindo na goiabeira ou chorando quando ela passava Merthiolate em meu joelho machucado. Na verdade, a primeira lembrança que me vem conscientemente é o aroma de pimenta de cheiro e flor de maracujá que ela exalava. Certamente – e há fotos que confirmam as minhas suspeitas – tivemos muitos outros momentos de cumplicidade anteriores, quando ela sorria e me pegava no colo, eu ainda bebê, maravilhada, desde já, com toda aquela beleza também sorria, desdentadamente. Essa admiração me perseguiu e existe até hoje dentro de mim, e foi fundamental em minha formação como mulher. Mas, nessa época, eu ainda não sabia da força que ela tinha, não sabia que era uma mulher destemida, com o propósito, muitas vezes, de contrariar os outros para satisfazer seus sonhos e desejos – sempre ilimitados! Não sabia eu que ela tivera, ao mesmo tempo, sete namorados, até que conhecera meu avô, e resolvera, com ele, dividir felicidades e agruras.
Mas, voltando aos domingos de almoço... lembro do quintal – todas as crianças deveriam ter direito a um quintal! - , e de um quartinho construído nos fundos, com uma grande escada – pra criança, todas as dimensões são mirabolantes - , onde meu tio mais velho morara durante sua juventude, antes de casar. Ignorávamos esse fato, e até duvidávamos! Eu e meus primos sempre imaginamos que dentro daquele quartinho, de paredes brancas descascadas, havia um laboratório secreto, cheio de tubos de ensaio e porções ferventes e esfumaçantes, como as do Visconde de Sabugosa.
Sempre fui muito ligada a eles. Meu avô, sempre delicado, amoroso, beijoqueiro e ciumento; ela, sempre disciplinando e ordenando, reclamando da postura, do jeito de andar... Hoje, ao lembrar disso, vejo como a fusão dos dois me deu todo o amor que eu precisava, e constato que fui uma criança insuportavelmente feliz!
Com ela, eu ia de mãos dadas ao centro da cidade, onde entrávamos em inúmeras lojas, provávamos centenas de roupas e calçados, muitas vezes sem nada comprar, e depois, não satisfeitas, lanchávamos caldo de cana com bolo de saia – para mim, a parte favorita do passeio!. Perdi a conta das vezes que confundiram-nos com mãe e filha, para orgulho de ambas, tamanha a semelhança física. Mas era verdade, eu era ela, ela era eu, duas frações de uma única pessoa, caminhando juntas. Ela me obrigava a comer os alimentos de que eu não gostava, mas supostamente faziam bem à saúde. Ela segurava a minha mão quando eu não tinha equilíbrio para andar sozinha, ela me guiava na vida, e era impossível imaginar-me sem ela.
Os anos foram passando, e eu, que costumava olhar para cima para sempre admirar aquela bela e forte mulher, acabei tendo que curvar o pescoço para beijá-la. Não fazemos mais os passeios ao centro da cidade, são muito cansativos, e os shopping centers são uma alternativa bem mais confortável. Substituímos o bolinho de saia e o caldo de cana pelo sanduíche natural e o suco de frutas com soja. Mas continuamos sendo uma. Eu sou ela, e ela, eu. Eu a obrigo a comer alimentos de que ela não gosta, mas supostamente fazem bem à saúde. Eu seguro a sua mão quando ela não tem equilíbrio para andar sozinha. Hoje, ela já não me guia na vida. Somos como dois golfinhos nadando, lado a lado, em sincronia.
Os anos nos fizeram bem, continuamos sendo uma só, em idades diferentes, vivendo-as simultaneamente. Recentemente, ela deu provas de que é bem mais forte do que qualquer um pudesse imaginar. Qualquer um, menos eu! Desde pequenininha, quando senti pela primeira vez aquele aroma de pimenta de cheiro e flor de maracujá, eu já sabia: a minha vovó é imortal!

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