Ir ao trabalho é uma atividade tão corriqueira quanto almoçar ou escovar os cabelos. Executamos essas atividades, diariamente, até o ponto em que se tornam mecânicas e não percebemos, muitas vezes, as nuances desses momentos.
Foi assim com aquela manhã em que cheguei ao meu trabalho. Manhã chuvosa, cinza, fria, sem vontade de ser manhã. Desliguei o carro, ainda ao som do Chico Buarque e sua Roda Viva, e olhei para frente, para o vidro do carro.
Dentre tantas gotas de chuva, uma gota, aquela gota, caiu naquele momento, parecendo uma lágrima longa e cheia, dançando pelo vidro. Nenhuma das outras gotas, esmagadas, desmanchadas por todo o vidro tinham aquela tristeza. E, naquele momento, não existia mais eu, e não existia mais a gota. Eu me converti em gota, em objeto em queda livre amortecida; e a gota, até então exterior ao meu ser, subitamente se convertera a algo interior a mim. Mente, corpo e água se fizeram completamente transparentes, perdendo, momentaneamente, sua opacidade existencial. Éramos um só, o reflexo do universo em conjunção naquele momento, concorrendo simultânea e paralelamente para seu harmônico e contínuo andamento. Esquecemos. Deixamo-nos, iluminar uma pela outra, e esquecemos. Esqueci que não era gota de chuva, a chuva esqueceu que não estava dentro de mim. Fomos um! A exteriorização do interior, a interiorização do exterior. A junção absolutamente indiferenciada e indivisível: uma pura consciência sem sujeito nem objeto.
De repente, ela findou, terminou de chorar, fez seu trajeto e morreu. Voltei a ser eu, ela já não era mais gota. Ao piscar os olhos, percebi que ainda estava no carro, o rádio ainda ligado, Chico ainda cantando.
Fechei tudo, desci do carro e fui trabalhar, ainda com uns versos do T.S.Elliot brincando em minha mente:
Música tão profundamente escutada que
Já não a escutamos, posto que nós mesmos
somos música enquanto dura...
5 comentários:
E ainda dizem que a internet não traz nada de bom. Ledo engano. A internet, mais especificamente o Orkut, me trouxe Lisavieta. Lisa que não conheço pessoalmente, mas já faz parte da minha vida. Lisa que não me conhece pessoalmente e que me ajuda sempre que peço.
Lisa que me emociona com sua sensibilidade, com seus textos.
Bendito, Orkut!
Lindo texto Lisa!
Eu já me senti assim. É aquele momento em que o mundo pára de girar por alguns segundos, e tudo o que vc sente é a música e ao mesmo tempo escuta e sintoniza com as batidas de seu coração.
No momento seguinte somos trazidos à realidade, mas a sensação de paz fica conosco.
Bençãos a vc, que sempre esteja tão sintonizada a sua alma quanto como eu senti hoje, ao ler seu texto.
Lisa,
Você captou a perfeita sensação daquele momento único em que "o mundo para de girar" para escutarmos nossa própria melodia. Seu texto é simplesmente lindo, delicado e sensível. Parabéns !
Bjs,
Olga.
Oi Lisa
Seus textos são um prazer para a
alma. O transporte é a emoção. Fiquei sem saber quem eu era, mais confusa que a chuva; como vc diz sem sujeito e sem objeto. Parabéns mais uma vez.
Um abraço
Porque será que são os momentos de angústia que inspiram?
Parece um soco no estômago, um raio paralizante...e, de uma hora para a outra, nossa vida parece dominada pelo pretérito imperfeito.
Ainda bem que tivemos nossos momentos, nossos dias, onde eu e você fizemos e acontecemos. Estes são os instantes que contam.
Um abraço.
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