26 de mai. de 2009
Linha e Agulha
Sonhei que, em mais uma manha, eu acordava angustiada - após sonhar com a vida que não tenho, com os projetos mil que fervilham em minha mente e não realizo, com as pessoas que amo e que me esqueço frequentemente de lembra-las disso, já que o dia passa tão rápido, que nem sinto, posto que já sou um zumbi das horas.
Em meu sonho, temo que o amor seja apenas um prefacio para o sofrimento; a desilusao, o primeiro parágrafo da segunda pagina; a solidão, o irremediável prólogo da obra.
No fervilhao de acontecimentos que parecem me rodear, sonho estar alheia a eles, ser alheia ao cenário em que acidentalmente me insiro, quase invisível, imperceptível, já que todos estão sempre muito ocupados para olhar de lado. E a vida passa.
Sonho que a vida passa, e um dia acordo, e não me reconheço ao me olhar no espelho. Em meu sonho, o tempo transcorre, e eu não me vejo. E, quando me vejo, já não me reconheço. Já não vejo mais os traços de esperança e feliz inocência. Vejo rugas, muitas rugas. Rugas de tempo perdido.
Em meu sonho, remeto-me a um outro sonho que tive ( o sonho do sonho???), e que povoa a minha mente desde então: o sonho das agulhas. Sonho estar sentada em uma cadeira de madeira, em uma sala espaçosa e quase vazia. Em uma segunda cadeira, está sentado um homem sem rosto (vejo o seu cabelo, sei que ele é alto, sei o tom de sua voz... mas não vejo seu rosto). Esse homem possui uma agulha em sua mao direita, e costura uma linha fina, finíssima, por entre as veias do meu pulso. Ao terminar, o homem, ainda segurando a agulha que prende a linha finíssima, me diz calmamente: “Puxa, quero ver se você tem coragem de puxar”.
E o pior, o mais angustiante, é a minha dúvida... puxo o meu braço ou não??, a linha é muito fina, mas será meu pulso capaz de resistir? Como medir a fragilidade? A angustia da duvida supera qualquer dor física.
O sonho do meu sonho angustia o meu sonho, me faz suar, temer, chorar. E quando a fome, a dor, a solidão e a exaustão me invadem, ainda sofro por não ser capaz de puxar o meu braço.
Acordo. Afinal, mais um dia começa. Foi só um sonho, mais um sonho.
Ao sentar na cama, ainda sonolenta, olho os meus pulsos. Durante todo o dia (e os demais dias e semanas), de vez em quando, checo os meus pulsos – não custa nada checar!!
14 de mai. de 2009
A Vida, em 257 Páginas
O psicanalista Contardo Calligaris, em entrevista concedida no ano passado, defendeu que a vida deve ser vivida como uma história que vale a pena ser contada; que qualquer vida deve ter a dignidade de merecer se tornar um romance. Não me contive, e comecei a imaginar... se eu pudesse escolher, que romance eu gostaria que fosse a minha vida?.
Provavelmente teria traços de romances como os do Milan Kundera, com foco na delicada - porém complexa - fragilidade da alma e dos sentimentos, e no leque de emoções que encerram as relações humanas. Nós, seres humanos, precisamos uns dos outros, mas nem sempre conseguimos conviver. E os romances do Kundera tratam da dor de termos que nos transformar constantemente , inventar novas maneiras de conviver, sentir, amar, em uma sociedade onde os nossos papeis são muito menos monolíticos. Somos todos tão diferentes – em nossas formas de lidar com amor, sexo, política, consumismo, casamento, religião... - , mas, ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de pertencer, a necessidade do direito de fazer parte da ágape.
Teria que ser um romance também com traços Dostoievskyanos, farto de debates sobre Filosofia, Psicanálise, Existencialismo e Fé, em meio a cenários de miséria humana absoluta – não necessariamente a miséria de ausência de bens, mas a miséria no sentido mais amplo: a miséria de perspectiva e conhecimento.
No romance sobre a minha vida, os acontecimentos do dia a dia (o cotidiano que nos rodeia e muitas vezes nos assusta) seriam usados para analisar a cultura contemporânea e toda a violencia a que estamos vulneráveis, enquanto individuos.
Afinal, somos todos capazes de transgressões?, temos todos, dentro de nós, o “gene” que nos condena a estarmos sempre propensos a violência – seja ela física ou subjetiva?, como expressar a nossa nata agressividade sem com isso comprometer o nosso bem estar e, consequentemente, o dos que nos rodeiam?
Acerca dessa questão, existe uma serie de correspondências entre Einstein e Freud durante a Guerra (no Brasil, reunidas em um livro sob o título “Por Que a Guerra?”), em que, em um certo momento, Freud é perguntado por Einstein se ele acha que um dia a violência deixará de existir, ou se ela é inata ao ser humano. Freud responde que infelizmente ele acha que a violência é inextinguível. Einstein não se conforma, e manda outra carta, tentando contra-argumentar, a qual Freud encerra respondendo “Lamento, mas humanos somos assim”. Enquanto humanos sentimos, erramos, celebramos, nos arrependemos, choramos e comemoramos. A forma com que encaramos cada um dos acontecimentos e a forma complexa como reagimos as marcas que ficam, é que nos define.
Muitas vezes, a nossa necessidade – enquanto sociedade - de apontar, julgar e condenar o(s) outro(s) nasce necessariamente do fato de que, a partir do momento em que apontamos, julgamos e condenamos, estamos transferindo ao(s) outro(s) as culpas e responsabilidades, e tentando vagamente esquecer que também somos capazes de errar e transgredir, que somos todos capazes – como aquele(s) que ora julgamos - de vermos despertadas em nós forças desconhecidas ou ignoradas. A realidade tem uma razão de ser, e se essa realidade se manifesta nas outras pessoas, ela deve existir também em nós.
Mas o romance da minha vida teria que ter mais um elemento – alem da sensibilidade extraordinária do Kundera, e da razão e crueza do Dostoievsky... Teria que ter o realismo fantástico do Gabriel Garcia Marquez, onde as mulheres são tão belas, os amores são tão profundamente vivenciados, as relações são tão fortes, o inanimado torna-se vivo de forma perfeitamente natural, e a vida é vivida, em ultima instancia, como uma grande poesia, em meio a prantos e sorrisos – mas, ainda assim, poesia!
Seria possível viver em um mundo tão louco, dinâmico e diverso, se não conseguíssemos vislumbrar poesia nas pessoas, lugares, ações?
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