Ir ao trabalho é uma atividade tão corriqueira quanto almoçar ou escovar os cabelos. Executamos essas atividades, diariamente, até o ponto em que se tornam mecânicas e não percebemos, muitas vezes, as nuances desses momentos.
Foi assim com aquela manhã em que cheguei ao meu trabalho. Manhã chuvosa, cinza, fria, sem vontade de ser manhã. Desliguei o carro, ainda ao som do Chico Buarque e sua Roda Viva, e olhei para frente, para o vidro do carro.
Dentre tantas gotas de chuva, uma gota, aquela gota, caiu naquele momento, parecendo uma lágrima longa e cheia, dançando pelo vidro. Nenhuma das outras gotas, esmagadas, desmanchadas por todo o vidro tinham aquela tristeza. E, naquele momento, não existia mais eu, e não existia mais a gota. Eu me converti em gota, em objeto em queda livre amortecida; e a gota, até então exterior ao meu ser, subitamente se convertera a algo interior a mim. Mente, corpo e água se fizeram completamente transparentes, perdendo, momentaneamente, sua opacidade existencial. Éramos um só, o reflexo do universo em conjunção naquele momento, concorrendo simultânea e paralelamente para seu harmônico e contínuo andamento. Esquecemos. Deixamo-nos, iluminar uma pela outra, e esquecemos. Esqueci que não era gota de chuva, a chuva esqueceu que não estava dentro de mim. Fomos um! A exteriorização do interior, a interiorização do exterior. A junção absolutamente indiferenciada e indivisível: uma pura consciência sem sujeito nem objeto.
De repente, ela findou, terminou de chorar, fez seu trajeto e morreu. Voltei a ser eu, ela já não era mais gota. Ao piscar os olhos, percebi que ainda estava no carro, o rádio ainda ligado, Chico ainda cantando.
Fechei tudo, desci do carro e fui trabalhar, ainda com uns versos do T.S.Elliot brincando em minha mente:
Música tão profundamente escutada que
Já não a escutamos, posto que nós mesmos
somos música enquanto dura...