21 de jun. de 2009

Impontualidades



Alice me ligou, para dizer que Ítalo, seu marido, havia pedido que ela voltasse. Ela me contou isso com uma ansiedade e uma sensação de vitória tão intensos, que não tive coragem de dizer a ela que, na verdade, Ítalo se sentiu so. Ele se viu so, naquele apartamento, e confundiu isso com saudade.

Ítalo chegava em casa, e sentia falta de ter Alice esperando por ele, sentada na varanda ou lendo um livro no quarto. De contar como fora o seu dia, de sentar para jantar placidamente com a esposa e terminar, assim, mais um dia. Alice nunca gostou de ler. Alice gosta de musica alta e de creme anti-rugas. Ela aguardava a hora em que ele chegaria em casa, e eles sairiam juntos para dançar, para jantar, para viver sempre em estado de férias, para fugir da monotonia do dia burocrático que eles tiveram.

Ítalo gosta de filmes antigos e de cha quente na cama. Quando Alice via Ítalo exausto, passando para tomar banho e se preparando para esquentar algo para comer, ela se decepcionava – sempre, invariavelmente. Ela respirava fundo, se despia, e ia encontra-lo no banho ou espera-lo na cama, para que eles se comunicassem da única forma que a eles era possível.

Ítalo nunca chegou em casa para encontrar Alice serena na varanda ou absorta em uma leitura, mas essa era a imagem que ele criava dela sempre que se separavam, e, de repente, ele sentia uma profunda saudade de quem ela não era. Ítalo se prendera a vida que ele idealizara mas que nunca vivera. Por isso, Ítalo ligava sempre pedindo para Alice voltar. Quando ele dizia “volta”, ele, na verdade, estava dizendo “estou com saudade da vida que quero ter, e da mulher que quero que você seja”. Quando Alice tirava a roupa para encontrar Ítalo no quarto, ela não estava dizendo “me possua”, mas, na verdade, ela pedia que ele entendesse que ela estava buscando um canal de comunicação entre eles, que o levasse para aquele mundo dela, tão distante do dele.

Não foi a primeira vez que eles brigaram, ou se separaram. E, em todas as vezes, o que acontecia, basicamente, era que eles não conseguiam coabitar, alem da intensa atração física. O dia a dia era insuportavelmente silencioso entre eles, vazio. Após duas semanas de uma reconciliação, passado o afã da saudade, da satisfação da libido, e da euforia, tudo o que Ítalo mais queria era ver-se livre de Alice e de suas cobranças; e tudo o que Alice mais desejava era que a química entre eles fosse suficiente para que ele lhe desse atenção, lhe abraçasse, conversasse com ela e eles voltassem a ter aquela vida desregrada a que ela se acostumara logo quando eles se conheceram.

Alice achara, a primeira vista, que Ítalo havia se apaixonado pela sua mais marcante característica: transparecer uma alegria contagiante e iluminar um ambiente. Quando Ítalo se cansou das intermináveis festas ou reuniões de amigos em que Alice apenas repetia o seu papel, ela se frustrou. Ela nunca compreendeu que o que fez Ítalo se atrair por ela foram as horas que se seguiam a esses momentos, quando Alice, exausta, serenava; quando ela apenas existia como um ser desprotegido, vulnerável, sem mascaras. Ítalo esperava que, com o casamento, com a relação duradoura e a convivência, Alice pudesse finalmente se desvencilhar de sua persona. Do que mais Alice sentia falta era do olhar de Ítalo pesando sobre os seus ombros, como se a despindo, enquanto bebiam e confraternizavam entre amigos. A ausência desse olhar sobre ela a fazia sentir-se invariavelmente abandonada.

A idéia de abandono – abandono esse que ela quase podia tocar quando Ítalo ia esquentar jantar e comer silenciosamente na varanda, ou quando eles terminavam de fazer amor e ele ligava o seu aparelho de som para escutar Nina Simone - remetia Alice a todas as insegurancas que ela acumulara desde pequena. Fazer amor com Ítalo, e apenas poder ter isso dele, era, para ela, a comprovacao de sua incapacidade de conexao com o mundo dele.

No fundo, ela sabia disso, mas, mesmo assim, insistia. No fundo, ele sabia que ligando para ela, ele estava retomando a tentativa de uma relação em que ele não acreditava, mas, mesmo assim, ele ligava.

Por isso, quando Alice me ligou dessa vez, eu nada falei. Apenas aguardei. Mais uma vez, ela me julgou insensível, como se eu não torcesse pela felicidade dela ou sequer fosse capaz de fingir estar feliz com a sua reconciliacao. Mais uma vez, calei. O meu amor por ela sempre foi tão desmedido que para mim sempre foi inimaginável quebrar a instável redoma de esperança que cerca a vida dela. Alice se trancou a qualquer possibilidade de ver a vida por outro ângulo.

A capacidade dela de adaptação a novas situações, de buscar soluções e forca para superar obstáculos, ou encarar frustrações e rejeição, é equivalente a sua capacidade de voar.

11 comentários:

Thaysa Ramos disse...

Lindo...e dolorido. Alice acorda...Alice se ame...Mas puta que o pariu ne...o Italo tb nao e facil nao...rs. Dois nao brigam qdo um nao quer...sabias palavras!

Lari Bohnenberger disse...

A gente tem a tendência de querer, de desejar ver os amigos com os pés no chão. Queremos que eles enxerguem a realidade. Mas tem que só saiba viver na iluzão, e quanto a isso, não podemos fazer nada!
Bjs!

Lorena Travassos disse...

Lisa, que texto lindo e delicado. Como Alice, eu não lido bem com rejeição(hehe), mas acredito que a gente sempre pode buscar algo mais além, não é?
saudade é redundante agora.
Beijo, te amo

polissemiaredundante.blogspot.com

Sabrina Noureddine disse...

Um texto sensível, mas tão realista que dói...
Inúmeros casais se iludem em querer enxergar no outro o que gostariam e não como ele realmente é...
Os amigos, o que podem fazer? Assistir, de camarote, os acontecimentos, quando a pessoa não está pronta para ver a realidade, não há o que se possa fazer...

Ovídio Maribondo disse...

Lisa,

Já está mais que dito o quanto que esse texto conseguiu ecoar, de frequências e intensidades diferentes, nos leitores.

Creio que para quem escreveo sentimento diante dessa reação deva ser o mesmo de um humorista que arranca risos de toda a platéia.

Parabéns!

Beijos reminiscentes e orgulhosos

leonardosanjos disse...

Lisa, seu texto é tocante, sobretudo quando estamos vivendo uma situação parecida. Não adianta tentar de todas as formas alertar, tentar abrir os olhos do amigo. Isso só passa com o tempo mesmo... infelizmente se perde muito tempo nessa passagem de uma página para outra da vida, as vezes nunca se vira a página. Enquanto isso só se pode pedir paciência dos amigos. Um beijo pra você.
O texto está belíssimo, parabéns.

Thaysa Ramos disse...

Kd o proximo texto...escreve...quero ler...as noites serao longas nessa terra Down Under....

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Lisa, como você está? Lindo o texto! Todos nós deveríamos sempre parar para pensar se realmente amamos o outro, tal como ele é, ou baseamos o relacionamento na esperança de transformá-lo naquilo que idealizamos. Evitaríamos muitas frustrações...
Beijo,

Alessandra Ramos disse...

Belo texto, filho. Vc consegue retratar situações como poucos.
Sou sua fã. Beijos

Anônimo disse...

Nem todo se humano é holístico Lisavieta, alguns preferem a cegueira, outros a ilusão... Pobre Alice e coitado do Italo, que não quer uma esposa e sim uma colega de quarto creio eu! Sorte dela em ter alguém como você Lisa. Não consigo parar de ler tudo o que escreve aqui, é tudo tão intenso. Obrigado pelas palavras, me ajudam como pessoa.